Cerca das 8h manhã de ontem 200 inspetores da Polícia Judiciária de vários pontos do país, seis procuradores e sete outros elementos da Procuradoria-Geral da República (PGR) começaram a encontrar-se em vários locais de norte a sul para, no âmbito da investigação ao negócio das golas inflamáveis, varrer a casa e o gabinete do secretário de Estado da Proteção Civil, a sede da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) – assim como a casa do seu presidente –, a empresa Foxtrot Aventura e vários Comandos Distritais de Operações de Socorro (CDOS). Mas as diligências já há muito que vinham a ser preparadas – só não aconteceram mais cedo para não perturbar o difícil combate aos incêndios das últimas semanas. Foram, por isso, inicialmente marcadas para dia 24 deste mês, no entanto, dado o período de campanha e o tempo ameno de ontem, as diligências acabaram por ser adiantadas quase uma semana. No total, foram realizadas ontem oito buscas domiciliárias e quarenta e seis não domiciliárias – algumas, como a que foi feita no Ministério da Administração Interna, duraram até ao final da tarde.
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Neste inquérito estão em causa fraudes na obtenção de subsídio, de participação económica em negócio e de corrupção. E as autoridades já constituíram como arguido o antigo adjunto do secretário de Estado da Proteção Civil, Francisco Ferreira – que se demitiu em julho –, Artur Neves, secretário de Estado da Proteção Civil, que ontem apresentou a sua demissão (ver pág. 4), e as empresas Foxtrot Aventura e Brain. Mas as investigações em curso podem fazer mais estragos, nomeadamente na Proteção Civil, dado que a casa do presidente, Mourato Nunes – escolha de António Costa –, também foi alvo de buscas. É que foi Mourato Nunes, como presidente da ANEPC, quem assinou os contratos com a Foxtrot.
O negócio pouco claro das golas
Antifumo pouco úteis São várias as suspeitas do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, que está a investigar este negócio desde julho, entre elas a utilização fraudulenta de fundos comunitários para a compra destes kits, a escolha das empresas por relações familiares e políticas através de um procedimento irregular e o preço das golas (custaram ao Estado 1,80 euros , quando o seu preço de mercado é 70 cêntimos).
A notícia de que foram distribuídas 70 mil golas inflamáveis no âmbito do programa Aldeias Seguras começou por ser considerada pelo Ministro da Administração Interna como “irresponsável e alarmista”, mas a forma como foram adjudicadas as empresas levaram logo o Ministério Público a abrir um inquérito, dados os indícios de crime.
Logo em julho, Francisco Ferreira pediu para sair, depois de se saber que fora ele quem sugerira as empresas que forneceram as golas, os kits de emergência e os panfletos de sensibilização, no âmbito do programa Aldeia Segura, Pessoas Seguras.
Se é certo que os procedimentos lançados foram os de consulta ao mercado, também não deixa de ser verdade que as autoridades suspeitam que as outras empresas consultadas nada tinham a ver com esta área de serviços e que apresentaram preços mais elevados, abrindo caminho a que a Foxtrot e a Brain One fossem as vencedoras – na prática foi uma forma de contornar as regras dos ajustes diretos, que só podem ser celebrados quando estão em causa valores até 20 mil euros.
Mas além dos valores e das supostas irregularidades, as ligações também fizeram soar os alarmes. É que a empresa que forneceu tais golas (compradas a preço superior ao de mercado) e os kits de emergência – a Foxtrot Aventura – é do marido de uma autarca do PS; e a sociedade contratada para fazer os panfletos, a Brain One, tem um histórico de adjudicações com a Câmara Municipal de Arouca, autarquia que Artur Neves liderou durante mais de uma década.
Ontem, Isilda Gomes da Silva, a autarca socialista, confirmou ao i a realização de buscas na casa da família, uma moradia familiar, situada na Rua dos Pedrais, em Santa Cristina de Longos: “[As diligências] tiveram a ver com assuntos do meu marido”, disse, acrescentando que “decorreu tudo normalmente e foi prestada toda a colaboração”.
Os milhares gastos pelo Estado com os kits
A Foxtrot Aventura, Unipessoal Lda. – de Ricardo Peixoto Fernandes, marido de Isilda Gomes da Silva, presidente da Junta de Freguesia de Longos, em Guimarães, e que também faz parte dos órgãos sociais da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários das Caldas das Taipas – arrecadou 102 200 euros (valor sem IVA) pelo fornecimento das 70 mil golas que, apesar de serem destinadas a pessoas que estão a braços com situações de incêndio, são de material potencialmente inflamável. E ganhou 165 mil euros (valor sem IVA) com a venda de kits de autoproteção.
Além da coincidência familiar, a empresa Foxtrot foi criada no final de 2017, 60 dias após o Governo ter decidido, em Conselho de Ministros, a criação do programa Aldeia Segura, Pessoas Seguras com vista à proteção de aglomerados populacionais e da floresta. Uma altura que coincide com a chegada de Francisco Ferreira, até aí padeiro de profissão, ao gabinete de Artur Neves. Mais: após ter ganho o concurso, a Foxtrot terá contratado a empresa de um irmão de Ricardo Peixoto Fernandes para a conceção das mesmas.
Já pela elaboração de panfletos, a Autoridade Nacional de Proteção Civil pagou, depois de uma consulta ao mercado, perto de 11 mil euros (valor sem IVA) à empresa Brain One, que já foi contratada por entidades públicas outras quatro vezes – duas vezes pelo município de Arouca (ambas em 2017) e outras duas pela Associação Geoparque Arouca (em 2018 e 2019).
PGR confirma suspeitas sobre poder político e empresários
“Em causa estão práticas levadas a cabo no contexto de uma operação cofinanciada pelo Fundo de Coesão da União Europeia destinada à realização de ‘Ações de Sensibilização e Implementação de Sistemas de Aviso às Populações para Prevenção do Risco de Incêndios Florestais’, enquadradas nos Programas ‘Aldeia Segura’, ‘Pessoas Seguras’ e ‘Rede Automática de Avisos à População’”, explicou ontem a PGR, adiantando que as buscas têm vindo a ser adiadas devido ao risco de incêndio: “Atendendo a que em alguns destes locais se desenvolvem atividades operacionais, com vista a minimizar efeitos de acidentes graves ou catástrofes, designadamente relacionados com incêndios, a concretização das diligências de aquisição de prova foi precedida de uma criteriosa análise da situação climática, sendo que as condições atmosféricas já haviam anteriormente ditado um adiamento das diligências, agora, em curso”.
*Com Joaquim Gomes