Em 2002 a campanha de Natal da Portugal Telecom usava a frase: «Em casa ponha o telemóvel na rua». O curioso jogo de palavras hoje soa ao canto do cisne da telefonia fixa. Quando a campanha foi lançada a diferença de preço das comunicações na rede móvel e na rede fixa ainda era significativamente diferente. Mas a relação com o telemóvel já era bem evidente, a utilização tinha aspetos irracionais e tentava combater-se o fenómeno.
Hoje em dia faz sentido dizermos o mesmo, mas por motivos completamente diferentes. Quando pensamos nos principais fatores de stresse do nosso quotidiano facilmente chegamos ao telemóvel. É fácil olhar para o nosso querido terminal e recordarmos, sobretudo em momentos de maior fadiga, o volume de chamadas, mensagens, notificações e todo um universo de solicitações das várias aplicações que, permanentemente, requerem a nossa atenção. E como a carne é fraca, quando o telemóvel dá sinal, imediatamente direcionamos a nossa atenção para o visor.
Para fugir à dependência que o telemóvel nos impõe, até há quem chame escravatura, amiúde tomamos algumas resoluções. Contam-se entre as mais populares silenciar o aparelho quando estamos em casa, deixá-lo longe da vista e, nas versões mais radicais do fenómeno, desligá-lo. É evidente a hipocrisia das medidas, nalguns casos até, uns indícios de patologia, trata-se de um objeto pessoal, com um conjunto de funções específicas, em relação ao qual temos o dever e a obrigação de conseguir controlar.
A realidade é que estamos cada vez mais atentos e industriosos na busca de soluções, de momentos, que nos permitam cortar com a realidade. A maioria das pessoas não quer fugir do mundo em que vive, longe disso, mas muitos não querem, de todo, estar sempre ligados e imensamente disponíveis. Meditação e relaxamento são exemplos desta necessidade, práticas com um número crescente de adeptos, socialmente bem aceites e que na opinião dos praticantes produzem bons resultados.
E aqui nasce uma aparente contradição, pois o objeto que porventura melhor simboliza o stresse é, cada vez mais, um grande aliado para o podermos combater. Refiro-me ao caso particular das aplicações na área do bem-estar, cuja oferta cresce a um ritmo impressionante, em 2018 foram cerca de 3500 as que foram lançadas para os sistemas iOs e Android. Estamos perante um mercado avaliado em mais de 130 milhões de dólares em 2018, com uma perspetiva de crescimento de 7% este ano. Já em 2017, a Apple distinguiu a Calm como aplicação do ano, um prémio muito cobiçado. Tornou-se no primeiro unicórnio desta categoria.
A oferta de aplicativos orientados para a promoção do bem-estar é cada vez mais abrangente, desde as ‘velhinhas’ aplicações de monitorização de batimentos cardíacos, ao universo de soluções de fitness, hoje desenvolvem-se soluções para melhorar a qualidade do sono que, entre outras funcionalidades, determinam qual o melhor momento para nos acordar. É provável que o seu próximo telemóvel já inclua algum tipo de funcionalidades e até possa mesmo ser, talvez, o seu maior aliado num processo de desintoxicação digital.
As contradições são normalmente pontos de reflexão interessantes, muitas ideias para produtos, serviços e campanhas publicitárias começam por aqui. É altamente sedutor para todo espírito criativo analisar fenómenos que aparentemente não têm lógica, não fazem sentido, mas que acontecem ali, à vista de todos. E normalmente são ótimos argumentos para captar a atenção das pessoas mais distraídas.
Da campanha da Portugal Telecom resta pouco mais do que a memória de um trocadilho engraçado e um vídeo no Youtube. Hoje deixar o telemóvel na rua significa não ter dentro de casa aquele que é, muito provavelmente, o melhor companheiro para relaxar. O que pode ser muito stressante.