A morte do antigo Presidente francês Jacques Chirac, aos 86 anos, teve direito a um discurso televisivo de Emmanuel Macron. Afinal, foram 40 anos de legado político, nem tendo sido condenado por corrupção, os franceses, de todos os quadrantes políticos, deixaram de lhe prestar um último tributo. Foi primeiro-ministro por duas vezes e dos poucos desde a formação da V República a conseguir dois mandatos como chefe de Estado. Gaullista, destacou-se pela oposição à invasão do Iraque, em 2003.
«Lembramos nesta noite com emoção e afeto a sua liberdade, a sua personalidade, o seu talento para a conciliação da simplicidade com a grandeza, proximidade com dignidade, o seu amor pátria mãe e abertura universal», proclamou Macron na noite de quinta-feira. «Um homem que amávamos tanto quanto ele nos amava», realçou.
Chirac foi o primeiro líder mundial a visitar os Estados Unidos depois dos ataques às Torres Gémeas. Visitou o Ground Zero e conheceu os bombeiros que retiraram Nova Iorque dos escombros dos atentados do 11 de setembro. Enviou, inclusive, tropas para o Afeganistão. Mas isso não o impediu de enfrentar Washington dois anos mais tarde. Numa época em que a ordem internacional multilateral já se começava a desmoronar, Chirac foi dos seus últimos defensores – e fê-lo contra a maior potência mundial.
Juntamente com o seu homólogo russo Vladimir Putin e o chanceler alemão, Gerard Schröder, liderou os esforços contra a guerra do Iraque. Temia que o conflito despertasse paixões contra o Ocidente, desencadeando uma onda de terrorismo. «Digo aos meus amigos americanos para terem muito, muito cuidado», apelou com o seu inglês fluente, mas carregado de sotaque francês, numa entrevista à CNN antes da guerra. «Pensem seriamente antes de tomar medidas que não são necessárias e que podem ser muito perigosas, especialmente na luta contra o terrorismo internacional», vaticinou.
O ambiente pós-atentados era tenso e a oposição não foi fácil. Chamaram-lhe maquiavélico, os norte-americanos boicotaram os produtos franceses e o Congresso liderado pelo Partido Republicano trocou as «french fries» por «freedom fries» da ementa da cafetaria onde comiam os congressistas.
Conservador e humanista, foi quando era primeiro-ministro que a França liberalizou o aborto e foi dos poucos políticos de direita que votou pela abolição da pena de morte, em 1981. Passados dois meses de ter sido eleito, Chirac foi o primeiro Presidente a reconhecer a responsabilidade do Estado francês na deportação de milhares de judeus para os campos nazis durante o regime de Vichy. «Estas horas sombrias vão para sempre manchar a nossa história e são um insulto ao nosso passado e às nossas tradições», assinalou. «França, a casa do iluminismo e dos direitos do homem, uma terra de boas-vindas e asilo, cometeu nesse dia um ato irreparável. Não cumpriu sua palavra e entregou aqueles que estavam sob a sua proteção aos seus carrascos».
Mas Chirac também era dado a declarações pouco diplomáticas. Uma vez, referindo-se ao Reino Unido, disse: «Não se pode confiar num povo que cozinha tão mal».
Durante anos foi assombrado por acusações de corrupção devido às quase duas décadas ao longo das quais presidiu a Câmara de Paris. Quando deixou o cargo de Presidente, acabada a imunidade, Chirac foi condenado a uma sentença de dois anos de prisão, em 2011, com pena suspensa devido ao seu estado de saúde. Chirac tinha desviado fundos públicos, criando cargos fictícios para pagar os trabalhadores do seu partido.
Era um homem contraditório, movido menos pela ambição, mais pelo ímpeto da sobrevivência política. Conta o Liberátion que uma vez lhe perguntaram onde se enquadrava: à esquerda, ou à direita. «Quer saber a substância do meu pensamento o que penso? Quer mesmo? Bem, francamente, não sei», respondeu Chirac.
A verdade é que, no dia da sua morte, foi louvado pelos dois espetros políticos. «Como líder que foi capaz de representar a nação na sua diversidade e complexidade e complexidade», recordou Macron no seu discurso, «Chirac incorporava uma certa ideia da França».