Escolheu um jardim no coração de Lisboa para desacelerar e se entregar à conversa, numa sexta-feira enevoada. Falou-se, claro, da Leonor, a ‘senhora da casa’ que interpreta em A Herdade, o filme realizado por Tiago Guedes que acompanha a história de uma família latifundiária e das mudanças do país; da nomeação para Melhor Atriz em Veneza ao lado de nomes como Meryl Steep ou Juliette Binoche mas, principalmente, do seu percurso enquanto atriz – ou, melhor dizendo, enquanto artista. Sandra Faleiro, atriz desde os 15 anos, encenadora desde os 21 é, aos 47 anos, uma mulher «obstinada», que «cresceu rápido» e que regrediu, assume a sorrir. «Uma coisa é na teoria, outra é dentro do corpo, e isso é outro estágio. Sempre duvidei dessa coisa do crescimento rápido, e senti isso na pele: tu achas que sabes algumas coisas, ou se calhar sabes mesmo, mas se elas estão só na teoria, muitas vezes fazes o contrário». Mais do que saber que caminho seguir, aponta, importa saber dar a volta. E uma das mensagens d’A Herdade será a de que, independentemente das regalias ou das dores do sítio em que nascemos, a felicidade é sempre uma conquista e o resultado da maneira como resolvemos os nossos próprios problemas. E Sandra Faleiro é o resultado feliz disso mesmo: de alguém que, como mulher e como artista, sofreu ruturas, lutou pelo seu caminho e continua, hoje, «apaixonada» pela arte que escolheu. A arte de contar histórias, de nos fazer parar para escutar e, quem sabe, de almejar sermos um bocadinho mais. Um bocadinho mais felizes, um bocadinho mais plenos, um bocadinho menos autocentrados. Ouçamo-la.
Nasceu em 1972, praticamente nos mesmos anos em que a sua personagem aparece, primeiramente, em A Herdade. Ouviu relatos, por exemplo, da sua mãe para construir a personagem?
A minha mãe não tem nada a ver com personagem, nada. O que aproveitei dela, ou pelo menos da forma como ela vivia, é que de facto aqueles eram os tempos da ditadura em que a mulher ficava em casa, não tinha grandes hipóteses de escolha, de ter uma carreira. Para viajar, as mulheres tinham que pedir autorização ao marido, essas coisas todas. A minha mãe não trabalhou, ficou em casa a tomar conta das filhas porque o meu pai não quis, ponto.
Foi dona de casa a vida toda?
Depois eles divorciaram-se e ela foi trabalhar. Venho da classe média, e para me inspirar para a Leonor pensei como viveriam as mães de certas amigas minhas, que vêm de uma classe alta, e falei com algumas delas. Pensei nessas mulheres, mas depois também foi um trabalho muito abstrato e uma coisa muito intuitiva. Quando comecei a ler a personagem pensei naquela frieza quente da Catherine Deneuve, pensei em montes de cinema que via dos anos 50, aquele registo daquelas mulheres distantes e frias e, ao mesmo tempo, pulsantes. Pensei naquele silêncio gritante.
A sua personagem é uma mulher que vive para dentro, que se expressa mais pela postura do que pela palavra.
É a filha de um general, foi treinada para sofrer em silêncio, para tratar dos filhos e do marido e para estar bonita e com um sorriso na cara.
Vamos ao seu caminho. Onde passou a sua infância?
Nasci na Maternidade Alfredo da Costa, como muita gente, mas cresci no Cacém, onde vivi até aos 19 anos. Até começarem as grandes construções, nos anos 80, o Cacém era campo. A minha infância até aos 11, 12 anos, foi campo puro e duro. Havia quintas, ia buscar o leite às vacas, vi uma ovelha a nascer. O Cacém era muito giro até ficar completamente estragado.
Os seus pais já eram de lá ou foram para lá?
Não, o meu pai era de Beja e a minha mãe é da Beira Alta.
Ficou com alguma ligação a essas terras?
Fiquei porque sou muito ligada à família. O meu pai já morreu, mas eu ia lá muito na infância. Mais velha nem tanto. À terra da minha mãe ainda continuo a ir todos os anos – aliás, ela agora vive lá, por isso vou mais vezes. Ela vem cá, mas eu também lá vou.
Cresceu numa família onde não havia artistas. Como se começa a encantar por esta forma de expressão em criança?
Era muito, muito tímida. Quando estava na primária, o Teatro do Bando foi lá fazer uma peça e eu encantei-me com aquilo. E depois estava sempre a ver bailado na televisão. E depois estava sempre a pintar. Foi uma coisa natural, sempre tive uma tendência muito grande para as artes: ou a pintura, ou a dança, ou o teatro. Nunca foi muito racional, era o que me atraía e onde me sentia feliz. Comecei logo a fazer teatro na escola, a criar grupinhos para fazer peças para apresentar os trabalhos. Era a melhor maneira que tinha para comunicar, era uma coisa que me trazia uma grande felicidade.
E foi assim que ultrapassou a timidez ou essa característica ficou?
Sou super tímida, mas fui aprendendo ao longo dos anos a ganhar as minhas defesas.
É um paradoxo que se ouve muito: pessoas que não têm vergonha nenhuma de subirem a um palco em frente de tanta gente e depois são bastante tímidas. Por que acha que isto acontece?
Não faço a mínima ideia.
Mas já pensou sobre isso?
Já, algumas vezes. Por exemplo, quando tenho que falar em público como Sandra atrapalho-me imenso e fico mesmo aflita. Sei lá, até ir a festas, fico ansiosa.
Não gosta então da parte social inerente à sua profissão.
Detesto. Não gosto mesmo nada.
Acha que cultivar esse lado é importante – ou é preciso – para quem quer trabalhar como ator?
Já me disseram que era muito importante, mas até agora tenho conseguido ter uma carreira e tenho ultrapassado isso, não tenho andado em todo o lado a mostrar. Não tenho e não quero. Ia-me violentar. E tenho imensos amigos, atenção – não sou daquelas pessoas que se fecha em casa. Tenho o meu grupo de amigos, de dentro e de fora do meio, e sou muito ligada à família. Acho que também é uma forma saudável de se estar na profissão.
Voltando um bocadinho atrás, os seus pais incentivavam esta sua veia ou não a compreendiam?
Quando era miúda, queria ir para o Conservatório de Dança e os meus pais não deixaram. Depois, quando acabei o 12.º ano, fui para o Conservatório de Teatro. Mas antes disso, com 15 anos, entrei no Teatro Aberto depois de ter feito umas audições. Os meus pais perceberam que tinham que me deixar ir. E foram impecáveis. Nunca me alimentaram nesse sentido, mas fui-me alimentando a mim própria e fui encontrando pessoas que me davam pistas e referências e fui atrás.
Quem eram essas pessoas?
Foi quando comecei a trabalhar no Teatro Aberto. De repente comecei a trabalhar com aqueles profissionais, que me aconselharam ir para o conservatório estudar teatro, e eu assim fiz.
Teve alguma figura tutelar quando começou, um padrinho ou uma madrinha?
Se se pode dizer um padrinho, talvez possa dizer o João Lourenço, com quem comecei a trabalhar.
Essa primeira peça foi a Rua. Em 1988?
Foi, em 88! É assustador, mas foi (risos).
Lembra-se da primeira vez que pisou o palco profissionalmente?
Lembro-me muito bem. Estava sempre nervosa. Mesmo com uma participação mínima em que dizia duas frases. E os meus colegas gozavam comigo, claro: «Oh Sandra, por amor de Deus, ‘raisparta’ a miúda!». Andava sempre angustiada, achava que para fazer teatro tinha que sofrer. Claro que, com os anos, fui percebendo que não era nada disso. Comecei a desbloquear a sério quando fui para o Conservatório e apanhei no primeiro ano o João Mota, que é um grande pedagogo e um grande professor de teatro. Foi um mundo novo que se abriu. Passámos aquelas fases de psico drama e estivemos a escarafunchar por dentro, as vísceras, a abrir as janelinhas da nossa alma. Isso obviamente que traz algum sofrimento, mas dá-te instrumentos para o teu trabalho. Depois começas a distanciar-te e a perceber para que serve aquilo.
O que a marcou na altura, nesse exercício de descoberta?
Fizemos um exercício que era a jangada, que era até uma coisa muito básica, em que tínhamos que atirar uma pessoa borda fora senão morriam todos. Um era o capitão, outro cientista, e por aí fora. Não sei que personagem era, só me lembro que atirei um colega borda fora, o Jorge Andrade, por acaso (risos). Entrei tanto dentro daquilo que saí da sala e pensei: ‘Sou uma assassina!’ Estive uma semana sem ir às aulas a pensar ‘matei uma pessoa’. De repente, liga-me o João Mota: «Sandra, mas o que se passa? Venha lá para as aulas, vamos resolver isso». Eu era muito miúda, levava aquilo mesmo a peito. Depois passou, mas foi uma coisa que me traumatizou a sério.
Quando começou a separar a Sandra? No início fica-se confuso?
Completamente, parece que entramos numa máquina de lavar roupa. Foi com os anos, a partir dos vinte e muitos. Tem a ver com a experiência e em perceber que poupamos muito mais energia e nos tornamos muito mais fortes se nos conseguirmos distanciar. O distanciamento é uma coisa essencial para a criação e para a vida, até para fazermos uma autocrítica e analisarmos onde podemos melhorar.
A história de darmos dois ou três passos atrás para conseguirmos ver o elefante inteiro.
Exatamente.
Estava a contar antes de começarmos a entrevista que saiu antes de terminar o conservatório. Foi trabalhar?
Trabalhei desde os 15 anos, portanto sempre estive em modo de trabalhadora-estudante.
E sempre como atriz?
Sempre, nunca fiz outra coisa.
Incrível.
É, não é? (risos). Sou muito obstinada. O que aconteceu no terceiro ano do Conservatório é que concorri para Clube Português de Artes e Ideias para fazer uma encenação, ganhei e fui fazer o Sob o Bosque de Leite, do Dylan Thomas. A partir daí desisti do Conservatório porque aquilo, naquele ano, já não me estava a fazer sentido.
Essa mudança foi rapidíssima – a miúda que no primeiro ano achou que era uma assassina por causa de um exercício para a mulher que, dois anos depois, sentia que ali já não lhe davam o suficiente.
Pois, talvez. Mas eu sempre cresci muito rápido e depois regredi (risos). Uma coisa é na teoria, outra é dentro do corpo, e isso é outro estágio. Sempre duvidei dessa coisa do crescimento rápido, e senti isso na pele: tu achas que sabes algumas coisas, ou se calhar sabes mesmo, mas se elas estão só na teoria, muitas vezes fazes o contrário
Está a falar da vida profissional ou da pessoal?
De tudo! Há uma, coisa que esta profissão tem muito engraçada que é estar-se sempre a trabalhar. Ser ator ou encenador – ou ser artista de uma forma geral, acho eu – é uma forma de estar na vida. Considero-me artista porque tenho mesmo de criar coisas, é um estado de espírito. Estamos sempre a observar, a canalizar coisas para a profissão. Claro que, quando estou com os meus filhos, estou mesmo com os meus filhos, mas há uma zona que cria uma memória qualquer que depois me vai servir para o trabalho. E não só aquilo que se vive. É um livro que se lê, uma pintura, um cheiro, uma música. Mas é inconsciente. No fundo, é estar atento.
Já recebeu um papel em que identificou profundamente coisas que já tinha vivido?
Deixe-me pensar… (silêncio) Já.
E não quer dizer qual é?
(Silêncio) Não, não quero (risos).
Fazendo aqui uma ponte para a sua vida: qual é a memória mais antiga que tem?
Quando a minha irmã mais nova teve um ataque de epilepsia.
São quantas?
Somos três irmãs, sou a do meio.
Como foi crescer numa casa com tantas mulheres?
Foi incrível. Somos super unidas, não sei o que seria da minha vida sem as minhas irmãs. Dão-me muito apoio, são incríveis. Não podia desejar melhor, mesmo.
Têm aquela ligação afetiva que se transforma em rede para a vida toda?
Completamente! Aliás, quando foi a ante-estreia d’ A Herdade, eu já tinha ouvido várias críticas, mas não descansava até ouvir as críticas das minhas irmãs porque elas conhecem-me muito bem, até ao tutano. E elas são super incisivas e certeiras. Quando elas me vieram depois falar sobre o filme e sobre o meu trabalho foi… muito bom.
Para si era pior uma má crítica vinda das suas irmãs ou vinda do melhor crítico de cinema do mundo?
Não faço ideia, mas se calhar é ela por ela. O melhor crítico de cinema do mundo ia provavelmente influenciar o meu trabalho, vinda das minhas irmãs era uma coisa no coração.
Até aos 20 anos qual foi o momento mais fraturante da sua vida?
Até aí tive uma vida incrível, não tive nada de fraturante. Depois dos 20 é que tive momentos muito, mesmo muito fraturantes. Os últimos quatro anos da minha vida foram terríveis, a minha vida deu uma volta muito grande. Foram anos muito difíceis em que tive que resolver muita coisa. E agora, neste momento, depois de me distanciar e de finalmente me sentir em paz, é incrível. Estou num momento da minha vida em que me sinto no pico. Estou a sentir-me muito bem. A forma como resolvemos as coisas que nos acontecem é o que nos define, e acho que resolvi tudo muito bem. Tenho uma alegria de viver que me está dentro da pele, e estou a dar valor às coisas bonitas. Se calhar se não tivesse passado por aquilo antes não teria estes momentos de felicidade, porque estou a apreciar muito mais as coisas boas que a vida me está a trazer. E até só as coisas do dia a dia: o tempo está bom, o meu filho sorriu-me, que coisa maravilhosa. São estas pequenas coisas, não é preciso mais.
Coisas como ser nomeada para Melhor Atriz em Veneza?
Hum… Que bom, se me trouxer mais trabalho! (risos) Claro que é bom, foi um orgulho para a família, os meus amigos ficaram todos super entusiasmados, senti muito amor e muito apoio à minha volta. É um festival sério, não é um folclore, é bom isso – mas agora gostava que, em termos práticos, tivesse repercussões.
Já ganhou vários prémios na área do teatro e da televisão e já tinha referido isso mesmo: que as distinções não se traduzem em mais – ou melhor – trabalho. Porquê?
Acho que temos um problema cultural, não sei. Estive a ler há uns meses o livro do José Gil, Portugal, Hoje – O Medo de Existir, que fala nisso. Os portugueses não se inscrevem. A história não está inscrita, a cultura não está inscrita, então estamos sempre a começar do zero. E há um medo qualquer de assumir as coisas. Dá-me a sensação que estamos sempre a começar de novo, independentemente do trabalho que já fizeste para trás, dos prémios que recebeste, do valor que provaste ter. Agora estas coisas servem também para dar um certo fôlego, é como se fosse uma bombinha de energia para nos mantermos, continuarmos a lutar e a fazer – mas não tenho expectativas nenhumas em relação ao que possa acontecer depois disto.
Porque já passou por isso.
Sim, e está tudo bem, porque o que me preocupa na realidade é manter a paixão para continuar a ser obstinada, e continuar a trabalhar e lutar pelos meus projetos. Isso é o que me preocupa. Se não tiver paixão é muito difícil, porque o meio é muito difícil, este país é muito difícil. É muito difícil aqui fazer o que quer que seja nas artes, e por isso temos que ter esta coisa que nos fazer ir para a frente. E para ser feliz, que o que quero é ser feliz! Se deixar de estar apaixonada estou só a sobreviver, e eu não quero – quero estar feliz na profissão e ter grandes momentos de alegria, senão nada faz sentido.
Começou novíssima a encenar. O que a fez sentir que queria estar desse lado?
Um acaso! Foi muito engraçado. Tive a felicidade de conseguir trabalhar com o Mário Viegas nos últimos anos da vida dele, e portanto ainda apanhei um dos mestres que tivemos. Estávamos a ensaiar uma peça e um dia ele vira-se para mim e diz: «Olha, Sandra, tu também és encenadora. Tens uma cabeça de encenadora, e para estrear nos cinco anos da companhia, vais ensaiar esta peça do Beckett». Era uma peça pequenina, de dez minutos, mas encenar assim de forma profissional nunca me tinha passado pela cabeça.
Tinha quantos anos aí?
21, 22. Peguei no texto, encenei e percebi que adorava. Tanto que concorri para o Clube de Artes e Ideias e fui encenar a outra peça.
Que ganhou logo um prémio.
Sim, e fui fazendo. Foi maravilhoso ele ter-me chamado a atenção para a encenação, porque me abriu um mundo incrível. Se eu pudesse, fazia as duas coisas sempre, porque para mim se complementam e porque sinto mesmo a necessidade de contar as histórias à minha maneira.
Fascinava-a mais então o próprio texto ou a oportunidade de trabalhar a plasticidade de outros atores?
Quando começo a pensar em encenar alguma coisa fascina-me o texto, a história. E depois começo a pensar nos atores. Mas quando estou a encenar é as duas coisas: ver tudo a funcionar e os atores a crescerem e a descobrirem coisas é um momento mágico.
É impressão minha ou gosta especialmente de Samuel Beckett?
Gosto muito, mas não o quero ver nos próximos anos (risos).
Esgotou o limite do absurdo?
Aquele homem é incrível, é genial, mas enlouquece qualquer um, é impressionante.
Ter esse background enquanto encenadora dificulta ou facilita o seu trabalho como atriz?
Facilita.
Mesmo no cinema?
O cinema é tramado. Não tinha prática nenhuma de fazer cinema, até porque, infelizmente, se faz muito pouco cinema.
É um trabalho assim tão diferente?
A base de construir as personagens e as suas várias camadas vem do teatro, dos textos que se leem, dos ensaios, disso tudo. Agora, há um registo de representação que não dá para o cinema, porque é tudo ao milímetro. Pestanejas ou um músculo faz um movimento e a interpretação está completamente ao lado daquilo que queres transmitir. É como na vida, há muitos mal-entendidos por causa de uma expressão ou de uma palavra que dizes que foi ao lado. Estamos sempre nesta história da incomunicabilidade. No cinema tens uma câmara em cima de ti como se fosse uma lupa, portanto é um trabalho mesmo muito interior, mesmo que a personagem fale muito. Então a minha personagem n’A Herdade, minha nossa senhora! Foi uma coisa muito interior, não podia ter um segundo de vazio – só quando o vazio era de propósito. Qualquer pestanejar nota-se logo. Então é sempre uma angústia.
O Tiago Guedes escolheu-a para interpretar uma mulher mais jovem do que a Sandra, pelo menos numa parte do filme. Julgo que nunca tinha visto em Portugal, só o inverso: muitas vezes são escolhidas atrizes de 30 e poucos anos para interpretar as de 50 e aí por diante.
Sofri horrores e o Tiago, coitado, sofreu horrores comigo, porque me senti muito insegura. Somos bombardeadas constantemente com estas imagens de beleza e com o culto da juventude, e de repente sou uma mulher com quarenta e tal anos a fazer uma mulher de trinta. E nos anos 70 [no filme] estava de facto preocupada, porque quando é para interpretarmos personagens mais velhos põe-nos maquilhagem, silicones na cara, criam mais rugas. Para ficar com um ar mais leve é mais difícil, e tem que se trabalhar uma energia particular. Achava que as pessoas não iam acreditar na personagem [na parte] dos anos 70. Depois chegámos aos anos 90 e, para mim, foi um alívio. Não tinha que estar tão preocupada com as rugas ou com a expressão mais pesada, porque aí a Leonor já tinha um outro peso – e o meu peso, também. Foi um trabalho também muito interior. Tenho a minha energia dos meus anos, como os anéis das árvores, e foi tirar os anéis à árvore. E isto é lixado, é uma limpeza! Senti exatamente a mesma angústia quando fiz o Dorian Gray, que era um miúdo. Lembro-me muitas vezes do Vertigo do Paul Auster para falar sobre este processo. Sofres, angustias-te, e depois quando vens ao de cima, voas.
Acha que se não se vivesse este momento de mudança de paradigma relativamente ao papel da mulher na sociedade que tinha sido escolhida?
Não sei se estamos a viver grandes momentos de mudança. Ele [Tiago Guedes] é uma exceção à regra. Vivemos num mundo machista, misógino… As mulheres ainda ganham menos, trabalham mais, os homens estão em cargos de direção e as mulheres a seguir.
Di-lo porque já o sentiu?
Nunca senti muito porque, desde miúda, nunca fui a menina bonita. Nunca tive isso. Sempre fui meia estranha, e isso é uma grande vantagem.
Nunca foi a loirinha de olhos azuis?
Nunca, porque também não deixei (risos). Estive sempre a destruir um bocadinho essa imagem. Então davam-me os papéis de bons secundários, que são muito mais interessantes do que as princesas. E com o passar dos anos é muito bom porque tens um grande leque de personagens que podes fazer, desde a mulher super sensual vamp até à maluca horrível. O que gosto mesmo é de me transformar, isso é que é muita giro (risos). E foi sempre por isso que lutei. Mas voltando à questão das mulheres: não, as coisas não estão a mudar. Há este culto da juventude e ouvimos sempre isto – um homem quando é mais velho torna-se charmoso, interessante, uma mulher quando é mais velha, é velha. Isto é horrível mas é verdade. Agora, estou-me pouco marimbando, porque há coisas muito superiores a isso. Só quero manter-me assim, saudável por dentro, que depois isso transmite-se para fora. Acho que envelhecer bem é isso. Se ficarmos muito apegados à imagem exterior – e eu percebo, porque se sofrem pressões de todo o lado -, estamos tramados.
A superação daquelas dores de crescimento de que falava à bocado também contribuiu para esse bem estar interior a que se refere. É isso então que lhe interessa, o resto das discussões sobre este tema…
O que me interessa é o amor (risos). Na profissão, na família, com os amigos. Dar e receber. Há que trabalhar para a felicidade. E não se fala da felicidade, da poesia, da filosofia, das disciplinas humanistas. Acho que está tudo desfocado. Não temos tempo para nada, a sociedade está completamente consumista. Fala-se na crise do planeta mas depois não se faz nada. Está tudo ao contrário, tudo errado. Temos que recuperar estas disciplinas. A Filosofia: o que faz feliz? A poesia, a beleza nas coisas. A literatura.
E como se muda isso, começa-se pela educação na escola ou tem que partir dos pais?
É tramado, porque depois os miúdos na escola têm os professores desesperados porque têm que dar não sei quanta matéria em pouquíssimo tempo e depois eles não assimilam nada. Lá está, é tudo de consumo rápido. Decoram naquela altura e depois a seguir já se esqueceram. Em casa, os pais estão stressados, cansados, depois de fazerem a comida e darem banho aos miúdos já nem conseguem falar, estão a babar-se no sofá. Não há tempo e as pessoas ficam desvinculadas umas das outras. Estamos assim numa zona tão difícil que começo a pensar: de facto, faz sentido continuar nesta profissão, caramba. Vamos lá contar histórias. Vamos lá desacelerar e parar um bocadinho no tempo. É o que gosto de fazer também no teatro. Acho que A Herdade também tem essa particularidade: o filme tem 2h46, entras no cinema e entras noutro tempo, noutra respiração. E isso é um grande feito nos tempos que correm.
Acha que o público precisa de ser, não quero dizer treinado, talvez educado, embora ainda não seja a expressão ideal, para ver estes filmes?
Pois, educado também não gosto muito (risos). Acho que tem que ser uma consequência. Não posso partir para um trabalho a pensar que vou treinar ou vou educar. Acredito que temos que partir para os trabalhos porque têm a ver com a nossa visão – toda a gente tem uma visão particular das coisas -, envolvermo-nos nisso e mostrarmos qual é a nossa particularidade. A partir daí se as pessoas entram noutro estado ou refletem sobre algo é uma consequência. E é uma consequência de um trabalho sobre a verdade, sobre a autenticidade, sobre a singularidade. Isso é que é bonito.
Há atores que são escolhidos ou preteridos pelo número de seguidores. Quando é que o trabalho de um ator deixou de ser suficiente?
Neste momento, posso dizer que ainda é suficiente. Na minha conta de Instagram, por exemplo, gosto de pôr coisas bonitas e acho que pode ser uma forma engraçada de comunicação com conta, peso e medida. Agora se for só para ter muitos seguidores… Já foste. Acho que isso tem mesmo os dias contados. As pessoas que veem os atores nas redes sociais querem vê-los nas redes sociais, interessa-lhes mais vê-los ali do que numa peça de teatro ou a representar uma personagem qualquer, porque é uma linguagem diferente.
Já se sentiu subvalorizada em Portugal?
Oh… Sentimo-nos todos, caramba. Também se sente, de certeza. Sentimos que estamos todos a começar do início. Agora a forma como lidamos com isso é que é fundamental para a vida.
Quando o seu nome começa aparecer ao lado de nomes como a Meryl Streep, a Juliette Binoche vê isso com deslumbre, neutralidade ou, para mencionar outro extremo, com algum desdém?
Desdém definitivamente não, e neutralidade não existe. Deslumbre também não. Orgulho? Sim. A Meryl Streep… A mulher é genial, claro que fiquei super orgulhosa.
Onde acha que A Herdade vai chegar?
Não faço ideia. Está a falar nos Óscares?
Porque não?
Acho muito difícil, e, sinceramente, este filme tem tudo para ir aos Óscares. A dificuldade está na política cultural do país. Num evento destes, tem que haver uma mobilização, tem que ser uma coisa bem apoiada. Acho que está a acontecer, e espero que se consiga. Vamos ver. Acho que o filme é um clássico no bom sentido, é cinema, não é um blockbuster. E acho que nos íamos orgulhar muito, mas tem também a ver com a forma como eles lá funcionam, com políticas do lado comercial, por isso não sei qual será o caminho.
E o seu caminho, como será?
Teatro.
Voltar a casa. Para encenar ou representar?
Voltar a casa, para encenar e representar. Vou fazer Tchékov . Estou a chegar à conclusão de que sou uma clássica, na realidade (risos).