Pergunta Alberto Caeiro: «Que felicidade é essa que pareces ter – a tua ou a minha?». Muitas vezes contrapomos a nossa felicidade à dos outros. Todos já vivemos situações em que a felicidade dos outros acarreta a nossa infelicidade, porque agem de forma contrária à que gostaríamos, porque têm sentimentos diferentes daqueles que esperávamos… Tantos e tantos exemplos que seria fácil cada um de nós identificar-se com eles.
Há, porém, um tipo de relação familiar em que colocamos a felicidade do outro à frente da nossa própria felicidade. Trata-se da relação filial. Ser pai ou mãe traz à tona o melhor de nós mesmos, na capacidade que temos de desejar que os filhos sejam felizes.
Diz Tolentino Mendonça: «Por maiores que sejam os receios, a relação filial não pode ser se não uma aventura de liberdade. Se por medo ou tentação de domínio acharmos que podemos ser donos do destino dos outros, equivocamo-nos terrivelmente».
E esta é a grande verdade que, como pais, sabemos que temos de enfrentar. A vida dos filhos é «uma aventura de liberdade», que devemos acompanhar, mas dando espaço para que os filhos sejam aquilo que são, para que cresçam com a certeza do nosso amor, e sintam a liberdade de serem eles a lançar-se em novos voos.
Recordo, a propósito, um belo texto de Khalil Gibran, pensador libanês, que diz, sabiamente, no bem conhecido livro O Profeta: «Os vossos filhos não são vossos filhos. / São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. / Vêm através de vós, mas não de vós. / E embora vivam convosco, não vos pertencem. / Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, / Porque eles têm seus próprios pensamentos. / Podeis abrigar os seus corpos, mas não as suas almas; / Pois as suas almas moram na mansão do amanhã, / Que vós não podeis visitar, nem mesmo em sonho. / Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, / Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados. / Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas. / O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e estica-vos com toda a sua força, / Para que as suas flechas se projetem, rápidas e para longe. / Deixai que a mão do arqueiro vos curve como se desenhasse um sorriso; / Pois assim como ele ama a flecha, que voa, / Ama também o arco que permanece estável».
E o que, como pais, procuramos ser é exatamente «os arcos dos quais» os nossos «filhos são arremessados como flechas vivas». Educamo-los, alimentamo-los, acarinhamo-los, vamos vivendo as suas alegrias e as suas tristezas, e estaremos sempre na retaguarda para o que precisarem, enquanto se vão lançando na vida. Os pais amam os seus filhos acima de tudo e de todos.
Recordo, a propósito, uma crónica do jornalista Daniel Oliveira (o filho de Herberto Helder, não o que pergunta o que dizem os teus olhos…) quando, em 2015, a mãe de um rapaz que assassinou outro condenou o seu filho no Facebook e desejou a sua morte, em busca de perdão alheio. Teceu, então, Daniel Oliveira um raciocínio que me comoveu e pareceu muito lúcido: «Uma mãe e, na nossa cultura, um pai, podem não perdoar um filho. Podem renegar toda a sua maldade e bestialidade. Mas, em princípio, não podem renegar o que são: pai e mãe. Desejam a sua própria morte antes de desejarem a morte de um filho. Amaldiçoam-se antes de amaldiçoarem um filho. Culpam-se sempre, mesmo quando a culpa não é sua. Não abandonam a cria, mesmo que a cria seja um monstro. A não ser, claro, que queiram proteger outra cria sua. (…) Apenas não posso, sem precisar de mais nada para além do meu instinto paternal, de deixar de me arrepiar com a forma como esta mãe oferece à comunidade, na busca de perdão para si, o seu filho para sacrifício. Só uma relação extraordinariamente deformada pode levar uma mãe a desejar a morte de um filho e a desistir dele no pior dos momentos. (…) Os pais amam irremediavelmente as suas belas ou horrendas criaturas. E quando não amam estão amputados de forma brutal na sua existência. Podem procurar no filho a responsabilidade do seu desamor. Mas é provável que estejam à procura no lugar errado. (…) Como se a singularidade do amor maternal e paternal não fosse a de até um homicida o merecer. E ao ver que nem isto é óbvio, percebo mais uma vez que o que vivi não chega para compreender todas as partes negras da vida. Nem a de que haja tanta gente que não sinta que o amor pelos seus filhos é incondicional e irrevogável. Acima do bem e do mal».
A propósito de os pais desejarem a felicidade dos filhos, diz Tolentino Mendonça,: «Como ensina Santo Agostinho, o amor é antes um volo ut sis, “quero que tu sejas”. Mais do que os estados que se atravessa e do que as estações que experimentamos está o que somos. A arte de ser deve prevalecer para lá das horas solares ou noturnas, dos processos de florescimento ou de impasse, da dança descendente da penumbra ou do desenho aéreo do júbilo. Não podemos desejar que alguém seja apenas feliz. Isso equivale a coartar a vida e a fantasiá-la perigosamente. Cabe-nos estimular os que amamos à corajosa aceitação da vida, no que ela tem de plenitude, mas também de vazio e até de deceção».
Penso que a maioria dos pais, quando deseja a felicidade dos seus filhos, sabe, de antemão, que a vida também lhes trará deceções e angústias, mas sabe, igualmente, que, se os tiver preparado para, dentro deles, encontrarem as ferramentas para encarar a vida tal como ela é, eles próprios procurarão a felicidade e tudo farão para que, na eterna equação entre felicidade e infelicidade, o resultado da vida seja positivo para a felicidade.
Diz Fernando Pessoa no Livro do Desassossego por Bernardo Soares: «Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja». Importa, pois, valorizar o «ser», e lutar, dia após dia, ou, no fundo, a cada 24 horas, para sermos felizes e para que os outros também o sejam.