A Vigorosa e a Poderosa são gémeas. Pelo menos, eu gosto de vê-las assim, na sua simplicidade de aço. Fazem parte da minha paisagem corriqueira do trabalho-Bairro Alto, ao princípio da noite, depois casa-trabalho, no dia seguinte, às vezes nem reparo se lá estão, no seu poiso de cais, esperando pelos barcos que descarregam contentores no cais da Bica do Sapato, caixotes imensos enferrujados, de tempos a tempos com automóveis por cima. Não há porto mercante sem gruas. A Vigorosa e a Poderosa podem desaparecer de um dia para o outro, os nomes, a tinta, vão-se apagando com o correr dos anos dos seus braços inteiriços, mas continuarão sempre fiáveis num recanto da memória.
Abi Bain tornou-se um homem vigoroso e poderoso, mas sempre foi fiável desde menino quando os seus pais fugiram de São Petersburgo, na Rússia, para Cambridge, no Massachusetts, antes da revolução bolchevique. A América sempre recebeu os judeus com deferência e os Bain rapidamente se sentiram em casa, com vizinhos do mesmo credo. Abi não precisou do Bar Mitzvah para se iniciar na vida adulta. Sisudo, ensimesmado, não aturava brincadeiras próprias da maldade infantil. Resolvia os assuntos à força de punhos e de uma forma tão simplista que não tardou a ver-se metido num ginásio local onde pudesse dar vazão a alguns instintos recalcados que sempre se recusou a partilhar.
No final dos anos 20, Abi Bain tinha nome para lá das fronteiras de Cambridge, Massachusetts. Dali até Nova Iorque a distância é curta e Bain percorreu-a depressa. A sua primeira grande vitória, no entanto, nasceu de uma derrota. Abi estava a ser espancado seriamente no ringue de Laurel Garden, em Newark, pelo Orgulho do Harlem, o retinto Jack McVey. O problema é que Jack levou longe demais a vontade de abater o judeu teimoso e calado que ia resistindo como podia aos seus ganchos e uppercuts sem dar parte de fraco. Se não estivesse tão obcecado em deixar Bain KO, teria ganho significativamente aos pontos e mandaria o insolente para casa também carregado de pontos. Mas abusou e foi desqualificado por ensaiar uns golpes abaixo da cintura. Seria um passo gigantesco para que Abi Bain viesse a disputar, três anos mais tarde, o título mundial de pesos-médios contra o campeão Maxie Rosenbloom, outro judeu, este do Connecticut, conhecido por Slapsie Maxie por dar murros de palma aberta como se fossem chapadas.
A vitória de Maxie, no Madison Square Garden de Nova Iorque, no dia 22 de outubro de 1930, foi terrível para o orgulho imenso e contido de Abi. Percebeu, nesse dia, que não tinha capacidade para se bater com profissionais da categoria de Rosenbloom. E foi traído de forma canalha pela sua autoconfiança. Isto é, decidiu medir-se em ringue com pugilistas mais pesados.
Para surpresa geral, desafiou o candidato a campeão de pesos-pesados, Tony Galento, para um combate em Dreamland Park: nome mais falso. Galento era um tipo fanfarrão de Nova Jérsia. De cada vez que chegava atrasado aos treinos, encolhia os ombros e respondia, pachorrento: «Até cá chegar ainda fui entregar duas toneladas de gelo…». Não tardou em ganha a alcunha de Two Ton. Pesava quase mais dez quilos do que Abi e massacrou-o por completo. Não apenas por uma vez mas por duas, já que Bain teimou na desforra. A segunda tareia foi tão bruta queAbi passou umas semanas valentes no hospital com o crânio amolgado, os maxilares partidos e uma série de lesões nas costelas que lhe comprometeram um pulmão e o obrigaram a deixar o boxe para sempre. Corria o ano de 1935 e tinha apenas 28 anos.
Por falar em fiável, se algum ator da minha adolescência era fiável, esse era Antonio Rudolfo Oaxaca Quinn, natural de Chihuahua, México, nove anos mais novo queAbi Bain e seguidor da sua carreira estranha. Quinn teve sempre aquele toque de gajo feio e avilanado com coração de manteiga. Ouvir Giuletta Massina gritar «È arrivatoZampanó!» e ser, imediatamente corrigida a pontapé com um «Zampanó è arrivato!!!» é tão fantástico como ganhar um Óscar por apenas oito minutos de cena a fazer de Gauguin em Sede de Viver.
Abi Bain deixou os ringues e passou a ser figura de Hollywood, aparecendo em papéis menores, na sua maioria em filmes nos quais o boxe era o tema: Kig Galahad, TheCrowd Roars ou Golden Gloves. Depois inspirou o seu colega Quinn na construção da personagem de Mountain Rivera em Requiem for a Heavyweight, algo que Abi nunca foi.
Numa das cenas Anthony Quinn combateu com Cassius Clay, que faz dele próprio, como não podia deixar de ser. Mountain Rivera e aquele que ainda não era Mohammad Ali alinham numa sequência fantástica filmada porRalph Nelson logo no início. Jack Dempsey, outro campeão do mundo de pesos pesados, também tem o seu momento. E Abi, o sisudo, não terá deixado de sorrir por dentro.
afonso.melo@newsplex.pt