Issy-les-Molineaux é uma zona aprazível dos subúrbios de Paris na qual o Sena domina a paisagem e há verde por todo o lado. Durante muitos anos, a profissão levou-me até lá. Correspondente do France Football ia trabalhar para a redação de cada vez que desembarcava na cidade. Depois ficava à conversa com os meus bons amigos Erik Bielderman, Jean-Phillipe Rethaeker e Dennis Chaumier até à hora de ser noite e irmos à procura de lugares onde a sede das madrugadas se mata devagar. Certa vez inesquecível, uma equipa de jornalistas de A Bola, reforçada com o Eusébio e o Humberto Coelho, defrontou, no campo de futebol de Issy-les-Molineaux, o nosso adversário favorito (com exceção das velhas guardas da Académica, manos Campos, Vítor Manuel, Gervásio e tudo e tudo), o conjunto de jornalistas do France Football acrescentado de Platini e Rocheteau. «Hélas…», como gostam de soltar os franceses. E não, não vale a pena pedir ao tempo que nos dê mais tempo porque ele é sovina demais para isso.
Em Issy-les-Molineaux há um velho clube de boxe, o Avia. «Boxe Anglaise», sublinham eles. A «Boxe Française», ou a savate, dá direito a uns pontapés nas fuças. No final dos anos 40, um rapazito nascido noutro belíssimo subúrbio de Paris, Neully-sur-Seine, filho de um pied-noir argelino, passava lá mais tempo do que nas salas de aulas. Chamava-se Jean-Paul Belmondo e iria ter um das mais vertiginosas carreiras da história do boxe.
No dia 10 de maio de 1949 sobe ao ringue para o seu primeiro combate, amador, enfrentando um matulão bovino: René DesMarais. Logo no primeiro round, Jean-Paul aplicou-lhe um direto tão violento nos queixos que o deixou estendido. Os dois combates seguintes foram mais renhidos. Belmondo venceu ambos por KO, tal como o primeiro, mas não se livrou de apanhar à grande e à francesa. Olhou-se ao espelho e observou com atenção o seu nariz esborrachado, de cartilagem amassada, os olhos desorbitados e os lábios rachados. Mais tarde diria: «Deixei o boxe no dia em que senti que ele estava a mudar a minha cara».
Belmondo é muito estimado pelos seus compatriotas mas, para mim, é um autêntico canastrão, como gostam de dizer os homens do cinema. Pode ter deixado o boxe ao fim de três combates apenas, mas o boxe não do deixou, marcando-o para a vida com uma das bicancas mais caliginosas da sétima arte. E pode ter deixado o boxe nos ringues mas nunca o deixou como espetador, sendo ainda agora um habitué de Cannet, a maior sala de combates da Côte d’Azur.
Em 1963, Jean-Pierre Melville resolveu realizar uma comédia policial baseada num livro de Georges Simenon: L’Aîné des Ferchaux. Um velho banqueiro rico, Dieudonné Ferchaux, envolvido numa série de trafulhices, é obrigado a sair de França, perseguido pela Justiça, e põe-se na alheta para Nova Iorque e Nova Orleães levando a reboque o guarda-costas Michel Maudet.
O filme tornou-se aporrinhante para Melville mesmo antes de começar a rodá-lo. Queria Spencer Tracy para o papel de Dieudonné mas, na altura, o americano estava muito doente e nenhuma companhia de seguros quis responsabilizar-se por ele. Aliás, só faria mais uma película na vida, Guess Who’s Coming to Dinner, precisamente no ano em que morreu, 1967. Por isso, Jean-Pierre teve de se contentar com Charles Vanel, um bretão que vinha dos tempos do cinema mudo, herói da I Grande Guerra, e com quem tinha uma embirração latente. Também quis Alain Delon para fazer de Maudet mas Alain nem lhe atendeu o telefone. Belmondo seria a sua segunda escolha.
Melville e Jean-Paul já tinham trabalhado juntos num filme filosófico chamado Léon Morin, Priest. Para Belmondo foi uma grandessíssima estucha. Preferia ação e comédia. Era um leitor voraz de Tintin, revistas desportivas e livros policiais.
«Roulez tambours, sonnez trompettes/Soixante berges ça se fête/Du conservatoire à Cyrano/Il a joué le Belmondo/Du conservatoire à Cyrano/Il a joué le Belmondo», cantava Jean Valle. Belmondo nunca acabou L’Aîné des Ferchaux. Melville era um fulano dado a frequentes excessos de linguagem e, certo dia, resolveu tomar Vanel de ponta e insultar-lhe a família até à quinta geração. O sangue de Jean-Paul ferveu como costumava ferver nos ringues. Arrancou os inseparáveis óculos escuros do realizador e aplicou-lhe um uppercut arrasador. Depois foi-se embora. Fizessem o resto sem ele e sem o seu nariz inconfundível que teve direito a canção: «Un jour dans une bataille rangée/Une de celles dont il avait si bien le secret/Un mec lui a d’un coup bien appliqué/Cassé son cap, sa péninsule, son nez!».