Um fim de semana destes, num parque a que ia em pequena pela mão da minha tia-avó, a peculiar fechadura de um portão, que está inalterada desde então, remeteu-me para uma série de sensações e memórias de infância adormecidas.
É uma coisa que me acontece com alguma regularidade e me faz pensar que foi uma infância cheia de pormenores e sensações. Visuais, olfativas, sensitivas, auditivas, gustativas e, ainda, emocionais.
Imagino que a minha pequena estatura me levasse a ignorar o alto mundo dos adultos e, ao mesmo tempo, a perder-me em pormenores próximos de mim, como essa fechadura. Por outro lado, o tempo de uma forma geral era infinito e o que tinha livre era imenso, e permitia-me dedicar-me a todos os detalhes.
Por oposição, dias depois, estando em casa dos meus sogros, comentei uma peça decorativa que pensei que fosse nova mas, afinal, estava ali há anos. É o tal mundo dos adultos, em que está sempre a acontecer qualquer coisa, em que o tempo é pouco para tantas tarefas e muitas vezes não temos oportunidade simplesmente de observar, sentir.
Na semana passada, em conversa com a educadora de um dos meus filhos, esta dizia-me que se tem apercebido de que a maioria das crianças já não observam o mundo à sua volta.
Os mais novos parecem ter entrado nesta correria dos mais velhos. Enquanto o meu tempo era infinito, agora ouço os meus filhos dizerem que a semana passou a correr, que o tempo passa muito depressa. Antigamente, a única coisa que nos alheava do mundo eram os desenhos animados, mas tinham um tempo limitado, só passavam na televisão umas horas por dia. Ao fim de semana saltávamos da cama bem cedo e ficávamos um bocado a ver televisão, mas depois tínhamos o resto do dia por nossa conta. Era um tempo demorado, que passava devagar, que era vivido com tudo o que criávamos e descobríamos. Agora, grande parte do tempo das crianças, desde pequenas, é passado em correrias de casa para a escola, da escola para atividades, das atividades para tomar um banho rápido, enfiar o pijama, jantar e cama. O pouco tempo livre de muitas é passado à frente de um tablet, de um telemóvel ou da televisão.
No tempo morto que tínhamos – que hoje, olhando para trás, se traduz em recordações bem vivas e ricas – dedicávamo-nos a observar o mundo à nossa volta, a descobri-lo, a senti-lo e a inventá-lo.
Com certeza, esta nova geração também terá as suas recordações, também sentirá cheiros que a transportarão para memórias antigas, mas está a perder uma série de preciosidades da vida e do mundo que dificilmente, mais tarde, terá disponibilidade para recuperar. O imediatismo é intenso, o tédio, quando não estão ocupados, é avassalador, ninguém quer simplesmente parar para observar, para sentir, para pensar.
A educadora do meu filho, este ano, vai investir na observação do mundo: ouvir a chuva, observar as folhas e flores, os animais, os pequenos detalhes. É estranho que tenhamos de ensinar uma coisa que devia ser intuitiva, mas talvez não fosse má ideia todos fazermos um esforço nesse sentido, de recuperar este império do sentir, estarmos atentos aos pormenores que fazem parte do nosso mundo, para que ele não se extinga nas cabeças dos mais novos.