Nada é inevitável, mas a História também é fruto do acaso e há incidentes que destroem muros de certezas. Em janeiro de 1989, o secretário-geral do Partido Unificado da Alemanha (PUA), da República Democrática alemã, Erick Honecker, declarou que o Muro de Berlim ia permanecer por mais «50 ou mesmo 100 anos» enquanto as razões para a sua existência permanecessem. Não permaneceram e a Alemanha e a Europa nunca mais foram as mesmas, com o Muro a cair a 9 de novembro, há precisamente 30 anos. Mas as mudanças não começaram com as exigências de reunificação da Alemanha.
«Em 1989 ninguém estava à espera que houvesse uma revolução», realçou ao SOL Win Windisch, funcionário sindical na Bavária e antigo ativista estudantil na capital alemã, nascido em Berlim de Leste, acrescentando: «Olhando para trás conseguimos ver as sementes, em retrospetiva, mas na altura não». A resistência iniciou-se em grupos pequenos, principalmente no verão desse ano, entre intelectuais, artistas, movimentos de música rock e punk e dentro da Igreja Evangélica. «Era o único sítio onde se podiam encontrar. Não quer dizer que as pessoas fossem religiosas», afirma.
Segundo Windisch, a resposta violenta do Partido Comunista da China aos eventos na Praça Tiananmen foi um catalisador para a mobilização dessas pequenas células de resistência. E pouco antes de 9 de novembro, o medo de que o PUA reagisse da mesma forma estava bem presente, continua o ativista.
A partir dos eventos em Tiananmen, a resistência fez-se de muitas formas e feitios, muito fora da capital. «Berlim era mais policiada. Lá a repressão era maior nesse período», diz Windisch.
Hoje a Alexanderplatz, praça no coração de Berlim de Leste, é bem diferente daquilo que era. Está cheia de estabelecimentos como o Starbucks, Dunkin’ Donuts ou Dechatlon, lojas impossíveis de se ver na Alemanha de Leste há 30 anos. Mas é na Alexanderplatz, a 4 de novembro de 1989, que se dá a primeira grande manifestação pelos direitos democráticos autorizada na RDA, agregando entre 500 mil e 1 milhão de pessoas. Uma demonstração de descontentamento quase nunca antes vista no país, ao redor do antigo Palácio da República, respondendo aos apelos de atores e realizadores dos teatros mais proeminentes de Berlim de Leste. Ao contário do início do ano, o ambiente que se vivia já tinha dado uma volta de 180 graus.
«Foi o resultado de oposições dentro e fora do país», nota ao SOL Lutz Brangsch, investigador da Fundação Luxemburgo, explicando porque é que a manifestação foi autorizada. «Foi um compromisso que o partido fez». Ou como pôs Windisch: «Era suposto ser um diálogo com o povo. O partido queria dominar a mudança pelo topo, mas já não havia essa disponibilidade», analisa o ativista.
A partir de outubro, o Estado já não conseguia controlar a mobilização de desobediência. Dentro das várias facções que organizaram o protesto, havia quem quisesse fazer uma manifestação ilegal, não partilhando o palco com o partido. Mas o objetivo era juntar o maior número de pessoas possível – e partilhar o palco com o partido era a melhor forma de o fazer, assinalou Windisch.
Nessa manifestação legal, o medo da repressão permanecia, diz Windisch. Mesmo assim, os manifestantes encheram o peito e vaiaram o antigo diretor da temível polícia secreta do país, a Stasi. Vários representantes de setores da sociedade da Alemanha de Leste falaram no pequeno pódio da Alexanderplatz: atores, escritores, cantores, cientistas, um advogado, dois teólogos, o antigo diretor da polícia secreta (Stasi), membros do Politburo e das fileiras do PUA, membros do Novo Fórum e Iniciativa pela paz e Direitos Humanos.
É nesta atmosfera que chegamos ao dia 9 de novembro. Já durante a noite, um porta-voz do partido comunista, Gunter Schabowski, fez um anúncio surpreendente numa conferência de imprensa. «Relocações permanentes», disse, «poderão ser feitas por todos os postos fronteiriços entre a RDA e a RFA [República Federal Alemã] ou Berlim Ocidental». A política era para ser implementada gradualmente, mas depois de o repórter Ricardo Ehrman perguntar quando é que estas novas regulações tomavam efeito, Schabowski enganou-se e respondeu assim: «Tanto quanto sei, têm efeito imediato, sem qualquer adiamento». Nos noticiários da noite, às 19h e 20h, a medida foi apresentada. O pivô Hanns Joachim Friedericks proclamou: «Este 9 de novembro é um dia histórico. A RDA anunciou que, com efeito imediato, a fronteiras estão abertas a toda a gente. As portas do Muro estão bem abertas».
Foi tudo o que os alemães de Leste precisaram de ouvir. Às 21h, uma multidão corre para a fronteira e o Muro deixou de existir simbolicamente. Em 1990, pouco menos de um ano depois, a Alemanha concretizou a reunificação.
O apetite pela mudança prendia-se tanto pela completa ausência de liberdades democráticas como pela reivindicação de melhores condições de vida. «Materialmente, as pessoas queriam mais. Não eram pobres, é um facto. Mas queriam mais do que tinham. E tudo bem», assinala Brangsch. «A RDA era um país altamente desenvolvido», continua: «Mesmo comparando com alguns países europeus ocidentais. Mas comparando com a Alemanha Ocidental, a produtividade industrial era à volta de 50% menor». «Cerca de 40% queria reformar o socialismo. Depois em novembro esse número diminuiu», diz o investigador. «Um facto interessante é que a maior parte de quem atravessou o Muro nesse dia, e que o fez noutros dias, ia trabalhar às horas certas em Berlim de Leste».
O movimento pela democracia não começou com exigências pela reunificação alemã, mas havia medo. Medo de que não fosse possível acabar com a ditadura na Alemanha de Leste. «Setembro/outubro começou como um movimento para mudar a Alemanha de Leste, mudar o país, exigindo uma mudança democrática», sumariza Windisch. «Para a maioria das pessoas havia um risco mais elevado em tentar mudar esta ditadura. Queriam direitos democráticos e mais justiça social. E isso é perfeitamente justificável», apontou. De que forma? «O povo pensou que a melhor e mais segura maneira de garantir isso era através da reunificação alemã (…).Muitas vezes as pessoas diziam que era apenas sobre ter uma televisão ou um carro, mas era também sobre direitos democráticos e sindicais», continuou Windisch, acrescentando que ficaram muitos direitos por garantir. Apesar da nota menos positiva, Windisch não se engasga na hora de apontar a grande vitória: «Agora podemos lutar juntos».