Quando o Presidente francês, Emmanuel Macron, declarou esta semana, em entrevista ao Economist, que a NATO está em «morte cerebral», usou «palavras drásticas» para descrever os problemas da Aliança Atlântica, que, de facto, «precisa de se aproximar», considerou a chanceler alemã, Angela Merkel. A menos de um mês do seu 70.º aniversário, a NATO enfrenta «uma discussão que já vem do fim da Guerra Fria», explica ao SOL Tiago Moreira de Sá, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), da Universidade Nova de Lisboa.
«Não temos qualquer coordenação de tomada de decisões estratégicas entre os Estados Unidos e os seus aliados da NATO», criticou Macron. O Presidente francês vê sinais de que Washington está «a virar as costas» aos seus aliados, na súbita decisão do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar as suas tropas do nordeste da Síria. Algo que permitiu uma ofensiva da Turquia – Estado membro da NATO – contra as forças curdas, apesar da oposição da maioria dos países europeus.
A posição dos norte-americanos na aliança atlântica «tem mudado nos últimos 10 anos, não foi apenas a administração Trump», assegurou Macron. Moreira de Sá nota que a preferência dos EUA passou da «aliança de democracias», que era a NATO inicialmente – com apoio incondicional, independentemente da contribuição económica de cada Estado – para «uma aliança clássica, onde só tem direitos quem cumprir os deveres».
A diferença é visível nos frequentes ultimatos do Presidente dos EUA para que os países europeus cumpram com as metas orçamentais da NATO – ou seja, invistam pelo menos 2% do PIB na Defesa. «Está a custar-nos demasiado dinheiro, e francamente eles têm de meter mais dinheiro», queixou-se Trump à CNN, em 2016, ainda antes de ser eleito. Se Presidentes anteriores tinham feito a mesma crítica – de George W. Bush a Barack Obama – nenhum foi tão insistente como o atual. Aliás, no mesmo dia da entrevista de Macron, Berlim anunciou que em 2031, pela primeira vez, cumprirá com essas metas – gastando quase 90 mil milhões de euros em Defesa, segundo estimativas para o PIB da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
Contudo, o grande problema subjacente à aliança atlântica é a falta de um inimigo comum, como era a União Soviética, assegura Moreira de Sá. Afinal, a NATO foi criada para «manter os soviéticos fora, os americanos dentro e os alemães em baixo», costumava dizer o seu primeiro secretário-geral, lorde Hastings Ismay. «Era o cimento da NATO», considera Moreira de Sá, salientando que durante a Guerra Fria havia «uma coicidência total de interesses» entre Estados membros. E a aliança tinha «uma missão e área de delimitação muito clara: a defesa do Atlântico Norte».
Agora, os EUA tentam apontar a Rússia e a China como os grandes adversários, num confronto ao estilo da Guerra Fria, como fez o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, esta sexta-feira, nas celebrações dos 30 anos da queda do Muro de Berlim (ver página 50-51). Os métodos usados pela China para suprimir dissidentes seriam «horrivelmente familiares» aos habitantes da antiga Alemanha de Leste, declarou Pompeo, acrescentando: «Hoje a Rússia – liderada por um antigo oficial do KGB estacionado em Dresden [Vladimir Putin] – invade os seus vizinhos e mata adversários políticos».
Contudo, a tarefa de criar novos inimigos comuns, ameaçadores como a URSS, não tem sido fácil. Apesar da tensão com a Rússia após a anexação da Crimeia, em 2014, a sua influência é sobretudo nos países mais próximos, com algumas excepções – como a Síria, do regime de Bashar al Assad. Já a China, a grande potência concorrente dos Estados Unidos, ainda que se esteja a armar, tem uma capacidade militar «que não tem comparação com a da União Soviética na altura, a nível nuclear e convencional».
Além disso, as relações com Pequim são um assunto divisivo dentro da NATO. «Os Estados Unidos veem-no de uma maneira, os vários países europeus de outra», com opiniões diferentes em Berlim, Paris, Londres ou Lisboa, afirma Moreia de Sá. Como mostraram as sanções norte-americanas ao gigante de telecomunicações Huawei, acusado de fazer parte do aparato de espionagem chinês pelos EUA, que recusaram que tomasse parte da construção das novas redes 5G – uma recomendação recusada pela maioria dos países europeus. No que toca à China «não há consenso possível», nota o investigador.
Insignificância europeia
«A Europa está a tornar-se cada vez mais irrelevante no sistema internacional. Por muitas razões, a principal porque não tem hard power», ou seja, poder militar, salienta Moreira de Sá. Se o Presidente francês aponta para maior integração militar europeia para colmatar essa falha – propõe um «verdadeiro exército europeu» – Moreira de Sá acautela: «A Europa não tem condições para se defender sem ser no âmbito do quadro transatlântico, até por causa do guarda-chuva nuclear norte-americano». O secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, concordou: «A unidade europeia não pode substituir a unidade transatlântica».
Algo que torna o crescente fosso entre os dois lados do Atlântico particularmente preocupante. «Damos por nós, pela primeira vez, com um Presidente americano que não partilha da nossa ideia do projeto europeu», lamentou Macron, numa altura em que Trump se coloca como defensor da saída do Reino Unido da União Europeia.
O Presidente dos EUA ainda este ano admitiu estar de olho num «acordo de comércio muito grande» com o Reino Unido – basta os britânicos livrarem-se das estritas regulações comerciais, ambientais e sanitárias, necessárias para participar no mercado unido da UE. «Estamos à beira do precipício. Se não acordarmos, há um risco considerável de a longo prazo desaparecermos geopoliticamente», alertou o Presidente francês.