«Hollywood compreendeu que a maneira de fabricar desejo já não passa pela defesa de pessoas como o Bruce Wayne», o bilionário que se mascara de Batman para proteger Gotham de vilões como Joker. São «personagens que fazem justiça a partir de cima», analisa o franco-espanhol Juan Branco, advogado de Julian Assange e figura destacada dos coletes amarelos. Branco escolheu Joker, de Todd Phillips, como um dos filmes a exibir no simpósio internacional Resistências, entre 15 e 17 de novembro. Está integrado na programação do Leffest – Lisbon & Sintra Film Festival, que acontece num momento em que, um pouco todo o mundo, de Hong Kong à Catalunha, passando pelo Líbano, Chile ou Iraque, o povo sai à rua em protestos.
Entre mesas redondas e debates programados em conjunto com a projeção de filmes, para o encontro viajam até Lisboa e Sintra líderes sociais, que vão de Rafael Correa, ex-Presidente do Equador, até Maxime Nicole, porta-voz dos coletes amarelos. Debaterão com cinema de resistência como pano de fundo. Uma espécie de contra-WebSummit, como o descreve Juan Branco, curador do simpósio.
«Fazemos exatamente o contrário: é um evento aberto a todos, para que os portugueses possam estar com líderes sociais de todo o mundo, gente que teve riscos imensos para fazer o que fez. Foram presos, espancados, exilados. E criamos esse espaço nos locais mais luxuosos de Lisboa, como o Tivoli», explicou ao SOL Juan Branco, que também foi convidado a discursar na Websummit, «um evento colonial incrível». «Os únicos portugueses com quem me cruzei foi quem estava a servir-nos, é alucinante. Tinha impressão de estar no Senegal em 1935». Só estavam presentes «os vencedores da globalização, que podem pagar entre 1500 euros e 25 mil euros para entrar no evento, onde ficam fechados, a privatizar à noite um bairro inteiro de Lisboa para a festa». Algo que «diz tudo da violência delirante deste modelo global».
Boa parte das personagens da Websummit poderiam facilmente ser comparados com a família Wayne, da maneira como é retratada no Joker, como nota Branco. «O desprezo neste filme vai para a família Wayne», salienta. Já no que toca ao Joker, interpretado por Joaquim Phoenix, «há uma suspensão do julgamento sobre os eventos, até assassinatos, muito rara da parte de Hollywood».
É que por baixo da loucura do Joker está Arthur Fleck, um comediante falhado, cujas angústias juntam doença mental a uma versão hiperbólica da sociedade pós-crash financeiro de 2008. O filme explora como se fazem as revoluções, «como se socializa um sentimento que parece individual, narcista, mas que se transforma numa força social muito forte». Foi o que se passou em 2011 com Mohamed Bouazizi, o vendedor ambulante tunisino, que se imolou após a ser humilhado publicamente e ver a sua banca de frutas confiscada. Foi o seu gesto de desespero que espoletou as Primaveras Árabes.
Em retroespetiva, não espanta que por todo o mundo se tenham multiplicado os manifestantes que usam máscaras de Joker para protestar. Mas, na altura, «ninguém concebia que Hollywood podia produzir um filme desse tipo», nota Branco. A questão é que hoje em dia, «é a única forma de tocar o público, falar desse sentimento de violência», assegura – e a indústria cinematográfica sabe disso.
«Só foi possível porque Hollywood fica longe de Washington», explica Branco. Já em França, onde tanto o cinema como o poder político e económico está centrado em Paris, «um grande produtor não pode marginalizar-se produzindo um filme tão transgressivo. Socializa com políticos, com gente de dinheiro, cria uma forma de autocensura».
O heroísmo de hoje
«O heroísmo hoje em dia está encarnado em pessoas que estão a sobreviver», assegura Branco. «Especialmente em países como Portugal, em que não há capacidade de resistência significativa». É esse o heroísmo demonstrado em Passámos Por Cá (Ken Loach), que ontem foi exibido numa sessão de abertura seguido de um debate.
Conta a história de uma família que luta com uma dívida crescente, após o colapso financeiro de 2008. O pai, Ricky, dá por si a trabalhar numa empresa de transportes, que promete a liberdade de gerir o seu negócio. Acaba por se aperceber que se trata apenas da liberdade de não ter direitos laborais.
Essa sensação da sociedade trituradora pode ser vista no Comportem-se Como Adultos (do grego Costa-Gavras), baseado no livro em que Yanis Varofakis descreve as suas reuniões com o Eurogrupo, quando era ministro das Finanças do recém-eleito Syriza. «O único representante disso que íamos ter disso era o Varoufakis, que afinal não vem. E acho que fico contente», menciona Branco. Porquê? «Porque é uma forma de resistência falhada».
Uma forma de resistência completamente diferente do que se observa em Marighella, de Wagner Moura, cuja exibição contará com a presença do realizador no Leffest. O filme conta a história de um guerrilheiro comunista, na ditadura militar – e tece paralelos claros com o Brasil de hoje. «O interessante é que nem é preciso dizer o que vemos ou não no filme, é claro», nota Branco. O próprio atraso na exibição do filme no Brasil é revelador, causado pelos sucessivos obstáculos impostos pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). A exibição no Leffest será uma das poucas nos próximos tempos, até que seja permitido o lançamento oficial. Mas a proibição talvez tenha funcionado ao contrário do pretendido. «Nunca tinha havido tanto entusiasmo com o filme», nota o advogado.
Trata-se de um filme «essencial», assegura o curador do Resistir. «Responde à necessidade de refletir sobre a resistência e a violência, um assunto sobre a qual pensámos muito». Mas Branco apresenta algumas pistas sobre a sua conclusão, através de uma frase do realizador Jean Jeunet: «Não há nada mais violento que uma rosa que nasce, porque rompe completamente o chão, reconfigura a natureza».
Mas para lá deste debate, por entre o estrondo dos tiros e das explosões, o que fica de Marighella é o silêncio ensurdecedor da censura: durante muito tempo, a maioria dos brasileiros nem sabiam que a guerrilha existia. Seria possível isso na era da internet? Apenas o contrário, assegura o advogado de Assange: «A indignação já não produz nada. O homem político sabe que vai ficar afundada num mar de palavras».
É por isso que os oradores convidados para o simpósio «não são Gretas Thunbergs. Utilizaram o seu corpo para resistir, de uma forma ou de outra». Branco assegura: «É preciso trazer o corpo de volta para a política».
Batalha campal
«Ouve-se o pai do Bruce Wayne, parece mesmo o Emanuel Macron, um ícone do progressismo liberal. Ouve-se as palavras e sente-se a mesma violência social», menciona Branco, enquanto fala do Joker. A referência não é casual. O advogado é autor do livro Contre Macron (Edition Divergence) e não esquece a repressão dos protestos dos coletes amarelos.
«Foi um dos poucos movimentos que conseguiu pôr no centro da agência mediática a vida quotidiana». Trata-se de uma coisa que não parece espetacular, gente que não tem recursos, mas os coletes amarelos deram-lhe outra dimensão, «entrando nos lugares mais luxuosos e elegantes de França, como os campos Elísios, para mostrar que existiam», explica Branco.
Essa disputa simbólica era «semelhante a uma batalha no século XVI». Ou seja: «Todos os sábados, num território anunciado, havia as forças do Governo e as forças de uma parte da população. Quem vencesse esse combate, ganhava legitimidade». O resto da semana, «era uma batalha moral», disputada nos media, nos bairros, nos locais de trabalho. «Mas no final da semana, todos aceitavam voltar».