Os monstros que levam as crianças à escola

Na gincana matinal por vezes saltam-me exclamações menos simpáticas, até que reparo no silêncio que reina no banco de trás.

À s vezes pergunto-me o que pensarão os meus filhos quando – a caminho da escola – protesto furiosa com algum condutor com quem me cruzo. Por que param de repente, em qualquer lado e sem aviso? Por que abusam sistematicamente da prioridade? Se a perdemos, podem passar dezenas de carros com condutores de ar ridiculamente empertigado e só teremos oportunidade de avançar quando algum ficar retido numa passadeira ou semáforo. Por que se metem à nossa frente na rotunda? Por que aceleram quando queremos passar? As relações entre carros – ou automobilistas – sobretudo quando há pressa, podem ser muito tensas. E na correria matinal para ir deixar as crianças à escola assisto todos os dias a situações que espelham o egoísmo de cada um. Às vezes penso como seria se houvesse um cataclismo e todos tivéssemos de fugir: a selva, certamente. E nesta selva nos movemos todos os dias, por vezes entre ameaças, arrogância, egoísmo e impropérios. Sobretudo no stress da cidade e em sítios onde o trânsito ou a circulação são difíceis. À porta das escolas os carros param para ir deixar e buscar as crianças, muitas vezes ignorando a fila que se forma atrás. E nessa gincana matinal por vezes saltam-me exclamações menos simpáticas, e quando me acalmo reparo no silêncio que reina no banco de trás.

Será que tenho sempre razão? Que a culpa é sempre dos outros? Claro que não! Trata-se de um momento em que enlouquecemos um bocadinho, em que canalizamos toda a nossa ansiedade, algumas frustrações, em que temos de lidar com a nossa impotência. Ali acabamos por protestar, por dizer quase tudo o que nos vai na alma, sem haver grandes consequências. Dirigimos a nossa fúria para um carro, para uma pessoa imaginária, sabemos que ninguém nos ouve, ninguém nos fará mal. O que importa se temos razão? É uma descarga que fazemos quase instintivamente, talvez também porque precisamos dela. Temos tendência a imaginar um monstro sem escrúpulos no outro carro, quando muitas vezes são atos vindos do acaso que não representam de todo a pessoa que os faz. Pela nossa parte, seremos os monstros dos outros.

E o que pensarão os nossos filhos no meio deste devaneio? Provavelmente que somos humanos, que também temos fraquezas. Que também nos irritamos e chamamos os nomes feios que eles estão proibidos de dizer. Uma vez deixei escapar: ‘Estas pessoas são mesmo idiotas’. E durante todo o caminho até chegarmos à escola tive de ouvir repetidamente os meus filhos a dizer ‘idiotas’ muito contentes. O mal estava feito. Mas apesar de não ser o melhor exemplo, talvez nestas alturas os nossos filhos também se sintam mais compreendidos nas suas fúrias.
Claro que não abro a janela para gritar com ninguém e muito menos saio do carro. Pelo contrário, nestas alturas em que sinto que há alguém demasiado zangado com a vida ou consigo próprio, que quer descarregar toda a ira em cima de mim, saio de fininho sem dar troco. Porque mais importante do que dar voz a estas zangas é zelar pela minha proteção e dos outros que – no banco de trás ou não – vão sempre comigo.