Estamos às portas do Natal. O ambiente à nossa volta é de festa, alegria, luz, fraternidade e paz, essa paz que todos nós tentamos transmitir a quem está ao nosso lado.
As prendas são um gesto de amor e de amizade que marcam esta quadra tão festiva de tal modo que, apesar de não ser o mais importante, Natal sem prendas é coisa que não cabe na nossa imaginação. Não há ninguém que nesta altura não recorde o Natal da sua infância passado na terra, no seio da família, o convívio com os amigos, as origens e as raízes.
Quando eu era adolescente, lembro-me de ter visto em casa dos meus pais, em Setúbal, um cartão de Boas Festas fora do vulgar em nome do meu pai extensivo a toda a família. Escrito numa folha de cortiça, o seu autor – o Dr. Cabral Adão, médico setubalense e poeta muito conhecido na cidade dizia assim: «Até numa folhinha de cortiça/Se podem desejar Festas Felizes/A originalidade mais atiça/O gosto que se cria nas raízes». Não há Natal nenhum que não me lembre desta quadra e do seu autor. Tenho dele uma pálida recordação. Foi ele que apresentou pela primeira vez o Coral Luísa Todi, um dos emblemas da cidade, no concerto inaugural no antigo Cine-Teatro com o mesmo nome, onde eu, na casa dos oito anos, fui o primeiro solista.
As minhas raízes estão, como se vê, naquela cidade – e, ao chegar o Natal, um sem número de recordações vem à minha memória.
A ida para os lados da Comenda à procura de musgo para o presépio; a linda casa senhorial de outros tempos, nos arredores da cidade, com uma localização privilegiada, virada para Troia com o Sado a seus pés; o presépio junto à janela; a mesa da sala com a braseira por baixo; o jantar em família; os cânticos ao Menino e o sapatinho na chaminé depois da Missa do Galo. Que belas recordações!
Hoje, Natal tem para mim outro significado. Penso muito nos outros, naqueles que não podem ter Natal. Procuro dar mais atenção àqueles que vivem só entre quatro paredes, tantas vezes sem o mínimo de condições, onde não entra a luz e se sente a falta da mão amiga que ajuda, da palavra certa que conforta e do sorriso que traz a esperança.
Se eu conseguir chegar até eles como os que conseguiram chegar à Gruta de Belém, então sim, tenho Natal. Na vida clínica também não consigo desassociar o Natal desta vertente humana – e, mal me falam nos diversos afazeres próprios da quadra, contraponho de imediato: «Já foi visitar algum doente a casa? Já foi ao encontro de algum conhecido seu que está num lar? Já foi a casa de alguém que vive só? Nesta época de excessivo consumismo, já pensou em ajudar alguma instituição de solidariedade contribuindo com um donativo?». Qualquer destes caminhos o pode conduzir ao Presépio do coração onde encontrará o Menino de braços abertos para o acolher.
Não posso deixar de falar nas crianças e nos jovens. Eles serão os homens de amanhã e requerem uma atenção especial por parte dos pais. Estas crianças parece que estão formatadas para o ‘ter’, o ‘receber’, o ‘comprar’, que nesta altura se acentuam ainda mais. Mas não as vejo minimamente preparadas para a partilha nem para o ‘dar’. Sinto isso no contacto diário com os doentes e seria bom serem educadas desde cedo a prepararem o verdadeiro Natal.
Os tempos mudaram e Setúbal é hoje uma cidade diferente que cresceu e se desenvolveu de uma forma extraordinária. As minhas raízes lá ficaram com a força do sentimento que me ligará ad aeternum àquela cidade fantástica. Saúdo afetuosamente a Dra. Maria das Dores Meira, presidente do Município, não só pelo muito que tem feito pela terra onde vivi mas também por representar para mim todo um passado que me é sempre grato recordar.
Afinal, não é só numa folhinha de cortiça que se podem desejar Festas Felizes. Há um Natal a chamar por nós das mais variadas formas – e com ele a lembrança do passado e a saudade dos que já partiram, sentimentos que, nestas alturas, nos tocam profundamente.
Vivamos o Natal como ele deve ser vivido. Oxalá sejamos capazes de transmitir estes valores aos mais novos, para que, um dia, sejam eles a sentir e a recordar ‘o gosto que se cria nas raízes’.