Kahanamoku tinha um ar pacífico mas não era bom de assoar. Aliás também era pacífico de nascença, mas aí geograficamente, se assim se pode dizer. Veio ao mundo na Hale’akala, depois rebatizada de Aikupika, hojeArlington Hotel, uma estrutura de dois andares em coral-rosa situada em Honolulu, noHavai, local que forneceu à sociedade muitos proeminentes havaianos.
Kahanamoku tinha um daqueles nomes que parecem saídos de um livro de Emilio Salgari, o Homero das selvas e cimitarras, pai de Sandokan, o Tigre da Malásia, senhor da ilha de Mompracem: Duke Paoa Kahinu Mokoe Hulikohola Kahanamoku. Ora, um fulano que tem apelidos que chegam para encher meia lista telefónica parece destinado ao mau feitio. O Duke até fica ali meio deslocado, mas era vício de família. Ganhou-o do pai, Duke Halapu, que por sua vez foi assim batizado pelo bispo Bernice Pauahi em honra do príncipe Alfredo, duque de Edimburgo, quarto filho da rainha Victoria.
Durante a IIGrande Guerra, Duke filho serviu na Polícia Militar. Apesar de estar longe das trincheiras, a mostarda subia-lhe ao nariz com frequência e não era, certamente, em forma de gás. Envolveu-se numa tranquibérnia com um desenhador naval chamado Lloyd Duncan, acusou-o de agredir dois soldados e, invocando a lei marcial imposta no Havai após o ataque a Pearl Harbor, levou-o a tribunal militar e espetou com o insurrecto numa masmorra. Duncan levou o caso ao Supremo Tribunal dos Estados e ganhou. Kahanamoku nunca digeriu a afronta. Ficou-lhe a pesar no estômago como mostarda de Dijon.
Duke jr. era de boas famílias havaianas. Um ohana, gente finíssima. Nunca lhe faltou dinheiro nem tempo livre. Tornou-se um beach boy. Se ainda fosse vivo, Patxi Andion poderia cantar em sua honra: «Sólo él tiene el derecho/de tutearle a la mar/le parieron mar adentro/y se le quedó la sal/lamiéndole los orígenes…». Mas Patxi Andion acabou de morrer e Kahanamoku caíu no fosso escuro do olvido. Podia ter sido parido no mar, tão irmão foi das ondas. Hoje dizem que criou o surf moderno ao entrar pelas vagas com uma prancha que pesava mais de 50 quilos, cavalgando os picos brancos de espuma como daquela vez em Waikiki, em 1917, equilibrando-se durante três quilómetros no oco do mar, de Castles a Queen’s. Depois, conta a lenda, desembarcou na areia e, para divertir a gente que se juntara para o ver, fez o pino. Era um homem ao contrário.
Duke pai ensinou Kahanamoku a nadar com uma frase: «Entra no mar e sobrevive». Duke filho tornou-se amante da senhora das águas. Cresceu até ao metro e oitenta e cinco e a natureza forneceu-lhe pés e mãos enormes como barbatanas. Em 1912, em Estocolmo, ganhou a medalha de ouro dos 100 metros livres e bateu o recorde do mundo. Em seguida, foi prata nos 200 metros da mesma categoria. A sua tez de ébano refletia o azul-cloro das piscinas e devolvia-lhe o céu impávido da baía de Honolulu.
Duke continuou pela vida fora a ser um vencedor. Nos Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920, voltou a ser ouro nos 100 metros livres e na estafeta da mesma distância. O seu maior rival era havaiano como ele, Pua Kelahoa, o único com coragem suficiente para nadar sozinho os 33 quilómetros que separavam as ilhas de Molokai e Oahu. Quatro anos mais tarde, nos Jogos de Paris, Kahanamoku tinha 34 anos. Ao seu lado, no momento do tiro de partida para mais uma prova de 100 metros livres, estava o seu irmão, Samuel. E, em contraste com o ar ensolarado de ambos os filhos do mar, a brancura de um gigante austro-húngaro chamado János Weissmüller.
Duke foi batido por Tarzan. O homem-macaco já lhe tinha tirado o recorde do mundo, percorrendo a distância em 58.6 segundos, e agora tirava-lhe o ouro. Os irmãos Kahanamoku regressram às ilhas com prata e bronze e devolveram-se ao oceano. Desta vez para sempre.
Hollywood deixou-se fascinar por John Weissmuller, mas não esqueceu Duke Kahamoku. Davam-lhe papéis à medida, de chefe indígena a pirata, tornou-se amigo de Charlie Chaplin e Paulette Goddard, mas nunca lhe deram dinheiro. Longe de casa, trabalhou como gasolineiro e estivador. Contracenou comHenry Fonda e Jack Lemon no filme
Mr.Roberts, de John Ford. Mr. Roberts é um tenente da marinha mercante que faz os impossíveis para que o enviem para o Pacífico lutar contra os japoneses. O papel de Duke foi tão insignificante que aproveitou o chamado do Pacífico para regressar definitivamente a casa. A tempo de, numa noite de tempestade, com a sua prancha, salvar 12 dos 17 tripulantes de um barco de pesca que se afundou ao largo de Honolulu. Dizia: «O mar vai ensinar-te tudo aquilo que precisas de saber».
Depois, ergueram-lhe uma estátua em Waikiki. Diz quem a vê que nunca Kahanamoku esteve tão desoladamente parado.
afonso.melo@newsplex.pt