Na discussão do Orçamento para 2020, que decorreu esta semana, foi dito que o Governo, em matéria de impostos, dava com uma mão para tirar com a outra. No entanto, no que respeita à habitação, nos últimos 4 anos, o Governo socialista tirou com as duas mãos e não deu com nenhuma.
Assistimos, durante quatro anos, à euforia de um Governo socialista a cavalgar o setor da habitação com impostos que decorriam de dois motores: por um lado, da subida especulativa do mercado imobiliário, e, por outro, da recuperação do setor da construção munido dos juros baixos oferecidos pela Europa. Foi um crescimento económico que em nada se deveu ao Governo, mas em muito contribuiu para pintar a fábula das ’contas certas’. Para Centeno, a habitação era um contribuinte e, assim, o Governo demitia-se da responsabilidade de proteger quem, com a especulação, estava a ficar fora do mercado. Esta responsabilidade foi empurrada para cima dos privados, enquanto ficavam vazios os edifícios do Estado, abandonados e a ruir à frente de gente sem casa.
Em termos legislativos, nada foi feito para enfrentar o monstro da burocracia, o terreno mais fértil da corrupção, e um dos mais graves entraves ao crescimento em Portugal. Por contraste, produziram-se compulsivamente ‘programas inovadores’ por decreto, cujo efeito, no terreno, foi zero. O último, chamado ‘Direito Real de Habitação Duradoura’, promulgado esta semana, propõe a uma ou mais pessoas «o gozo de uma habitação alheia como sua residência permanente por um período vitalício, mediante o pagamento ao respetivo proprietário de uma caução pecuniária e de contrapartidas periódicas». Ou seja, por rendas acessíveis e por 10 a 20% do valor do imóvel, o proprietário remete o direito de rescindir o contrato para o inquilino. Quem é que se irá meter nisto?
Aqui chegados, parece que a falta de habitação vai ser resolvida nestes próximos quatro anos com um grande programa de obras públicas, o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE), que terá a seu cargo os tais edifícios do Estado e mais de mil milhões de euros que vão sair das reservas de segurança das pensões dos portugueses para fazer obras. O plano é reabilitar os edifícios, com o dinheiro das pensões, e disponibilizá-los para habitação acessível, garantindo rentabilidades de 3% a 4%. Mas será ajuizado passar os riscos inerentes a empreendimentos imobiliários para cima das nossas pensões com o que aprendemos da crise imobiliária de 2008? Quem repõe as reservas, se estes mil milhões se esfumarem nas construtoras?
O FNRE aparece como a sequela de um filme que deixou más memórias. Ainda em 2019, os tribunais andavam a braços com os processos dos Estádios 2004, e sabe-se lá quando é que a justiça nos irá dizer o que se passou com a Parque Escolar e com o ex-primeiro ministro socialista, José Sócrates, que, em televisão, afirmou viver de envelopes de milhares de euros em dinheiro emprestados por ‘um bom amigo’ ligado ao setor da construção.
Neste país, o diabo não está nos juros, na dívida, nem vem de fora. O diabo está na burocracia, na ineficiência da Justiça, e numa cultura de corrupção que destas duas decorre. Neste país, o diabo está onde sempre esteve. Cá dentro.