Qassem Soleimani. De ‘ladrão de cabras’ a arquiteto do ‘Eixo de Resistência’

Aos vinte anos Soleimani combatia atrás das linhas inimigas, no Iraque de Saddam Hussein. Como líder da elite da Guarda Revolucionária iraniana tornou-se ‘o mais poderoso operativo do Médio Oriente’.

Há muito que o Iraque de Saddam Hussein desapareceu, mas os iranianos não esqueceram os horrores da guerra de 1980-1988. Dos racionamentos e bombardeamentos aéreos, das trincheiras aos ataques químicos ao estilo da primeira Guerra Mundial, até às vagas humanas de iranianos mal armados e equipados, que se lançaram contra as forças de Saddam, na altura apoiadas pelos Estados Unidos, França, Reino Unido e Alemanha.

Entre a constelação de mártires e heróis da República Islâmica que daí surgiram, talvez o mais brilhante tenha sido Qassem Soleimani. Com pouco mais de 20 anos, liderou uma brigada de homens da sua província natal, combatendo atrás das linhas inimigas. Cultivou relações com líderes xiitas e curdos do Iraque, opositores de Saddam – alguns seriam seus aliados para resto da sua carreira – depois de participar na repressão de revoltas curdas no Irão.

Para Soleimani, a guerra foi a mesma desde então, contra o «Grande Satã», como lhe chamava o aiatola Ruhollah Khomeini: ou seja, os EUA e os seus aliados. A sua reputação permitiu-lhe subir nas fileiras da Guarda Revolucionária do Irão, tornando-se general e encabeçando a Força Quds, um corpo com cerca de cinco mil tropas de elite, encarregue das operações não convencionais no estrangeiro. Uma mistura entre forças especiais e serviços secretos, através da qual o general armou e financiou uma rede milícias e Estados pró Irão por todo o Médio Oriente. Hoje, esses aliados choram a morte de Soleimani, alvo de um drone dos EUA no final da semana passada, perto do aeroporto de Bagdade, no Iraque, onde começou a sua carreira – e prometem vingança.

«Hoje Soleimani é o mais poderoso operativo no Médio Oriente e ninguém ouviu falar dele», disse em 2013 à New Yorker John Maguire, ex-agente da CIA. Ninguém no Ocidente, atenção. «Cartazes e posters de Soleimani surgem em comunidades e aldeias remotas do Iraque ao Líbano. É celebrado com um herói por grupos pró-iranianos até locais tão longínquos como o Bahrain, do leste da Arábia Saudita ao Iémen», escreveu Mahan Abedin, no seu livro Iran Resurgent: The Rise and Rise of the Shia State, publicado em julho do ano passado. Baixo, discreto, de cabelo branco e ar duro, o general era «o rosto mais visível entre os líderes e comandantes iranianos», para comunidades xiitas no Médio Oriente, terreno fértil da mensagem revolucionária da República Islâmica.

Já do lado dos árabes sunitas, muitos acusaram Soleimani de orquestrar ataques terroristas por toda a região. E Washington acusava-o de ter nas mãos o sangue de centenas de tropas dos EUA, mortas por bombas à beira da estrada e ataques das milícias xiitas iraquianas, que se insurgiram entre 2011 e 2013. «Ele é de facto como o Keyser Söze», disse em 2011 um oficial norte-americano ao Guardian, comparando Soleimani ao vilão do filme Suspeitos do Costume, que estava em todo lado e em lado nenhum. O Presidente dos EUA, Donald Trump, garantiu que pretendia evitar um ataque «eminente» com o assassínio do general, ordenado a partir do seu resort de Mar-a-Lago, na Florida.

 

O pedreiro que sonhava com a revolução

Qassem Soleimani nasceu em 1957, no seio de uma família de camponeses pobres e devotos, na aldeia de Qanat-e-Malek, em Kerman, no sudeste do Irão. Eram os anos do impopular reinado do xá Mohammad Reza Pahlavi, aliado próximo dos EUA, cuja polícia secreta, a SAVAK, esmagava a oposição com tortura, assassínio e perseguição. Na altura, o jovem Soleimani, apenas com a instrução primária, trabalhava como pedreiro para pagar as dívidas da família, mas no Ramadão não dispensava os sermões de Hojjat Kamyab, um pregador radical, protegido do futuro Supremo Líder Ali Khamenei.  Tudo mudou em 1979, com a Revolução Iraniana e a queda do xá. Soleimani junta-se à Guarda Revolucionária, logo no momento da sua criação: a sua geração, dos fundadores, ainda hoje domina os escalões mais altos da organização.

No ano seguinte, como tantos outros jovens iranianos, Soleimani foi lançado para a frente de batalha, contra Saddam, com pouquíssimo treino. Os seus arriscados ataques de guerrilha no Iraque, dos quais frequentemente voltava com uma cabra às costas, para grelhar, valeram-lhe a alcunha de «ladrão de cabras» na rádio iraquiana, lê-se no artigo da New Yorker. «Entrei na guerra numa missão de 15 dias e acabei por ficar até ao fim», contou Soleimani, numa entrevista citada pela revista norte-americana. Acabou ferido em várias ocasiões, perdendo muitos homens, incluindo Ahmad, um familiar que levou consigo. «Éramos todos jovens e queríamos servir a revolução», recordou o general.

Depois da guerra, durante os anos 90, Soleimani comandou a Guarda Revolucionária na província de Kerman, próxima da fronteira com o Afeganistão, apoiando os rebeldes afegãos – sobretudo xiitas – que enfrentavam os talibãs. O comandante destacou-se pelas suas campanhas contra o tráfico de ópio na fronteira, sendo promovido a líder da Força Quds em 1998.

 

‘Eixo de Resistência’

«A lição de Soleimani – que ele cristalizou como doutrina no Irão – é que para um poder fraco como o Irão, a geoestratégia funciona apenas por confrontação indireta», escreveu o analista Graeme Wood na Atlantic. Sob a liderança do general, as forças de Teerão fizeram contra os EUA e os seus aliados o que este fez contra os soldados de Saddam. «Encontras pontos fracos inesperados nos teus inimigos, nervos expostos aqui e ali, em sítios esquecidos», explicou Wood. Foi Soleimani que arquitetou o chamado «Eixo de Resistência», uma rede de satélites iranianos que se estende do Hezbollah, no Líbano, mais o Governo sírio de Bashar Al-Assad, passando pelo Hamas na Palestina, bem como as poderosas milícias xiitas iraquianas, os combatentes afegãos e paquistaneses e os rebeldes houthis no Iémen.

Aliás, o general esteve constantemente presente na guerra entre o Israel e o Hezbollah, em 2006, como representante do Supremo Líder Ali Khamenei junto do líder da milícia xiita, Hassan Nasrallah. Tiveram de fugir juntos, sob fogo israelita, contou recentemente Soleimani, em entrevista às televisões iranianas. Ao longo dos anos, o general foi moldando os seus aliados do Hezbollah à imagem das forças armadas do Irão. Ou seja, dando grande ênfase ao seu arsenal de mísseis – devido à fraqueza das suas forças aéreas e navais – e usando enormes forças terrestres, maioritariamente de infantaria ligeira, para defender as bases de lançamento. Graças a isso, quando Washington pondera qualquer ataque militar a Teerão, também tem de pensar nas dezenas de milhares de rockets apontados aos seus aliados em Telavive, a partir do Líbano. A situação é semelhante à dos rebeldes iemenitas houthis, cujos mísseis apontam para a vizinha Arábia Saudita, ou das milícias iraquianas, armadas com morteiros e rockets Katyusha fornecidos por Teerão, apontados às bases dos EUA no seu país.

O general norte-americano David Petraeus contou várias vezes que, em 2008, quando liderava os militares dos EUA no Iraque, recebeu uma mensagem no telemóvel onde se lia: «Caro general Petraeus, deveria saber que eu, Qassem Soleimani, controlo a política do Irão para o Iraque, Líbano, Gaza e Afeganistão. De facto, o embaixador em Bagdade é membro da Força Quds. E o indivíduo que o substituir será membro da Força Quds».

 

Na terra natal de Saddam

Poucos têm dúvidas que foi Soleimani a salvar o autoritário regime de Bashar Al-Assad, após as revoltas da Primavera Árabe: convenceu o Hezbollah a intervir na Síria, em 2012, e recrutou dezenas de milhares de afegãos e paquistaneses para defender Assad. Contudo, o general também teve um papel fundamental no combate ao Daesh, quando este tomou boa parte do Iraque e da Síria, em 2014. Nesse ano, foi Soleimani que acorreu a Bagdade, reforçou as milícias que fugiam do norte do país e convenceu os clérigos xiitas a apelar à resistência. O seu papel de lenda da República Islâmica consolidou-se quando supervisionou a tomada de Tikrit aos combatentes do Daesh. «O poder dessa imagem para uma audiência iraniana, que recorda o sofrimento dos anos 80, não não pode ser sobrestimada – o mais reconhecível general iraniano a marchar confiante pela terra natal de Saddam!», escreveu Graeme Wood.

Claro que o apreço não era universal. Certa vez, um oficial das secretas iranianas – que funcionam em paralelo com as secretas da Guarda Revolucionária – queixou-se a outro de que Soleimani se publicitava com o combate ao Estado Islâmico, «publicando fotos de si mesmo em diferentes redes sociais», numa das centenas de comunicações iranianas reveladas em novembro pelo Intercept, em conjunto com o New York Times – no cabeçalho desta lia-se que não devia ser partilhada com a Força Quds. Outro memorando recomendava: «Temos de pensar em limitar a violência contra sunitas inocentes no Iraque e as medidas de Soleimani».

Contudo, agora que o general foi assassinado, no país onde começou a sua ascensão, a fazer o que melhor sabia – organizar milícias xiitas contra o «Grande Satã» – centenas de milhares juntaram-se para as marchas fúnebres. Em Kerman, a multidão era tal que morreram esmagadas mais de cinquenta pessoas, um dia depois de o aiatola Khamenei chorar sobre o caixão de Soleimani. Se os seus inimigos celebram a sua morte, também se ouvem gritos de vingança um pouco por todo o Médio Oriente.