O juiz Carlos Alexandre deu esta semana a oportunidade ao arguido e ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes de desistir de António Costa como testemunha no processo Tancos, por considerar que o depoimento do primeiro-ministro só seria importante se fosse presencial, algo que não foi autorizado pelo Conselho de Estado – o órgão consultivo do Presidente da República aceitou o pedido de Costa e só autorizou que prestasse declarações por escrito. Mas isso significa que o primeiro-ministro está livre de ir ao Tribunal Central de Instrução Criminal para ser inquirido pelo superjuiz? Não. É, aliás, provável que isso venha a acontecer.
Vamos por partes, porque o assunto é complexo e, como em quase tudo, há entendimentos diversos da lei. De acordo com Código de Processo Civil (CPC), que define as prerrogativas de inquirição de membros do Conselho de Estado, como é o caso de António Costa, «se algumas dessas pessoas preferir depor por escrito, remete ao tribunal da causa, no prazo de 10 dias a contar da data do conhecimento […] declaração, sob compromisso de honra, relatando o que sabe quanto aos factos indicados». Ainda no número 3 do art.º 505.º é referido que, após isso, «o tribunal ou qualquer das partes podem, uma única vez, solicitar esclarecimentos igualmente por escrito, para a prestação dos quais se estabelece um prazo de 10 dias».
Se depois deste esclarecimento por escrito adicional ainda sobrarem dúvidas, «a parte que tiver indicado a testemunha pode solicitar a sua audiência em tribunal, justificando devidamente a necessidade dessa audiência para completo esclarecimento do caso». E acrescenta-se que da decisão do juiz não cabe qualquer recurso.
Ou seja, à terceira, se a parte que arrolou a testemunha decidir que ainda faltam esclarecimentos e o juiz concordar, o membro do Conselho de Estado terá de ir mesmo a tribunal para depor presencialmente.
Mas é no número 5 deste artigo do CPC que surgem algumas dúvidas e que surge até a hipótese de nem sequer ser preciso esperar pelos esclarecimentos escritos para que um magistrado chame alguém como o primeiro-ministro na qualidade de testemunha: «Não tendo a testemunha remetido a declaração referida no número 3, não tendo respeitado os prazos ali estabelecidos, ou decidindo o juiz que é necessária a sua presença, é a mesma testemunha notificada para depor».
Se, para alguns juristas, que pediram anonimato ao SOL por não quererem pronunciar-se publicamente sobre o caso em questão, este texto não significa que o juiz possa obrigar a testemunha a ir presencialmente ao tribunal antes de esta usar o seu direito de depor por escrito (se for essa a sua intenção), para outros, como Paulo Saragoça da Matta, o número 5 deste artigo do CPC vem dar esse poder ao juiz, caso este ache necessário que a inquirição seja presencial.
Ao SOL, o advogado lembra mesmo que «no processo penal o que se busca é a verdade material» e para isso concorrem dois princípios: «O da imediação, ou seja, todas as provas serem produzidas perante o julgador»; e «o do contraditório», para o qual é fundamental analisar mais do que uma resposta escrita.
Saragoça da Matta vai mais longe e lembra que, além disso, «o princípio da verdade material tem tutela Constitucional», enquanto «o instituto da prerrogativa não visa tutelar qualquer fim Constitucional». Isto significa que o primeiro se sobrepõe aos benefícios concedidos aos membros do Conselho de Estado no Código de Processo Civil.
Recorde-se que, esta semana, Carlos Alexandre elaborou um despacho em que questionava Azeredo Lopes sobre se mantinha o interesse no depoimento de António Costa, uma vez que o Conselho de Estado apenas autorizara a que este preste declarações por escrito. No documento, datado desta terça-feira, é ainda feita referência à vontade transmitida pelo primeiro-ministro ao órgão consultivo do Presidente da República para que fosse inquirido por escrito: «Tal pedido parece ter desconsiderado a posição assumida pelo tribunal quanto à necessidade de o depoimento ser presencial».
Mas, afinal, como justifica Carlos Alexandre a necessidade de ouvir presencialmente António Costa? De acordo com o despacho, a ida do primeiro-ministro é fundamental para que seja possível formular «questões, sub-hipóteses, explicações» e «introitos». Em segundo lugar, defende o juiz, «havendo outros cidadão acusados em coautoria [além de Azeredo Lopes], não será de desconsiderar que queiram solicitar esclarecimentos».
Deixando claro ter noção de que António Costa não é uma testemunha comum, uma vez que ocupa «um cargo da maior Dignidade possível», o superjuiz lembra que já tinha demonstrado a necessidade de a diligência ser presencial: «Sem pretender ser atrevido, procurando conhecer a Constituição e a Lei e os entendimentos jurisprudenciais atinentes, o Tribunal entendeu ser necessário e adequado o depoimento, a ser autorizado, ser presencial».
Carlos Alexandre aproveitou ainda para citar no seu despacho um ensinamento que lhe foi transmitido pelo seu professor Marcelo Rebelo de Sousa, hoje Presidente Rebelo de Sousa: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade pessoal e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária».
Entretanto, a defesa de Azeredo Lopes já fez saber que lhe é indiferente a forma como António Costa prestará o seu depoimento, abrindo, no entanto, a porta a prescindir de tal diligência. Isto, caso esta tenha de ser por escrito e o tribunal mantenha o entendimento de que tal prejudica «o esclarecimento dos factos, a defesa de algum dos coarguidos ou a celeridade do processo».
Sublinhando que arrolou a testemunha por considerar que o seu depoimento é relevante, a defesa acrescenta que não lhe compete «escolher ou determinar a forma como as testemunhas, por si arroladas, devem prestar o seu depoimento».
E porque prescinde? Para «evitar que a divergência [entre o tribunal e o Conselho de Estado] motive especulações natureza não processual e a sua exploração na praça pública e sobretudo pela perturbação emocional com nefastas consequências para a sua família».
Mas, por lei, mesmo que o arguido Azeredo Lopes venha a prescindir da testemunha, o juiz de instrução poderá vir a chamar a mesma, caso a sua audição venha a revelar-se fundamental no decurso das diligências de instrução.
A fase de instrução do caso Tancos – relativo ao desaparecimento e achamento de material bélico daqueles paióis nacionais – teve início da última quarta feira, dia em que nenhum dos arguidos chamados (Válter Abreu e Jaime Oliveira, ambos suspeitos do assalto) quis depor. Na quinta-feira foi a vez de Roberto Pinto da Costa, major da PJ Militar, e do sargento desta polícia Lage de Carvalho, também arguidos, se remeterem ao silêncio. Este caso tem 23 acusados, entre os quais o ex-ministro da Defesa e o ex-diretor geral da Judiciária Militar.