Numa semana em que a geopolítica gera ruído (Irão/EUA), mas em que os fundamentais da economia tendem a melhorar, duas perplexidades colocam em causa o regime político em Portugal. De um lado, a irrelevância nacional da escolha do líder do PSD e do outro, a afirmação do Presidente da República sobre a urgência do aumento dos magistrados, mesmo acima do próprio salário do primeiro-ministro.
Se no primeiro caso estamos diante da entropia do sistema partidário, com apenas 40 mil militantes do PSD a escolherem o líder da oposição entre três candidatos pouco cativantes, no segundo, estamos diante do reconhecimento que o regime está capturado pelos juízes, apesar da perceção generalizada que a justiça é instrumentalizada e que quando é escrutinada em instâncias europeias é quase sempre condenada.
Comecemos pelo PSD. Ninguém quis saber dos debates à volta do futuro líder do PSD. Nem o país, nem o PSD. Dos 150 mil militantes, apenas 40 mil quiseram pagar quotas (12 euros por ano) para poderem participar na escolha da alternativa política aos socialistas. Menos do que esses votarão hoje e depois, na segunda volta. Rui Rio, o incumbente, obviamente já perdeu, mesmo que ganhe estas diretas. Como não apostou num novo discurso, até o voto contra do OE/2020 lhe saiu mal. Pareceu incapaz de se entender com o PSD e os seus militantes. Só o facto de poder ser forçado a uma segunda volta, prova que terá menos votos que nas últimas diretas. E, na segunda volta, não agregará mais ninguém, o que dará vantagem ao challenger, Luís Montenegro, um adversário pouco carismático, que apareceu com um discurso sem novidade e uma estratégia improvável de conquista do poder, mas que pode ganhar porque a maioria do PSD provavelmente rejeita Rui Rio.
Finalmente, Pinto Luz. Um produto do marketing da poderosa Câmara Municipal de Cascais, que não se conseguiu afirmar nesta candidatura. Ainda por cima, terá inevitavelmente que entregar o seu apoio a Luís Montenegro, numa segunda volta, pois nunca se poderá associar a um Rui Rio em queda, que se viu forçado a lutar, sempre com menos votos e que passou a campanha a fazer a apologia de acordos de regime, que um PS, cada vez mais hegemónico e seguro à esquerda, desprezará certamente.
Uma perplexidade que diz muito da atual disfuncionalidade do nosso sistema de partidos.
A segunda perplexidade foi no encerramento da sessão solene de abertura do ano judicial, quando o Presidente da República apontou o «prestígio social da justiça» como um dos cinco desafios do setor e destacou as alterações remuneratórias aprovadas na anterior legislatura como «um passo significativo embora limitado» nesse sentido.
Era tudo o que Marcelo não podia ter dito, quando existe um sentimento tão grande de desigualdade em Portugal: para mais, pediu ainda aos políticos que dessem um exemplo de «contenção e comedimento» abstendo-se de aumentos, ao mesmo tempo que os exigia imediatamente para os juízes, que assim não darão nenhum exemplo de «contenção e comedimento».
Marcelo mostra até que ponto o regime é desigualitário e está capturado pela Magistratura. Já foi essa a razão porque António Costa os aumentou na legislatura passada. Estranha-se agora, que Marcelo entre no concurso. Só desgasta o regime.
Até ao 25-A, magistrados, militares, professores, médicos e políticos tinham todos remunerações equivalente e os tetos salariais eram praticamente iguais. No Estado Novo, as profissões que sustentavam o Administração eram mais equilibradas. Era uma questão de decência, de decoro.
Com o 25-A foram os militares ficaram com um envelope maior, porque o Conselho da Revolução mandava no regime. Sá Carneiro lutou contra isso e obrigou Eanes a colocar os militares nos quartéis. Pouco depois, libertamo-nos de Eanes também.
Agora é a vez dos juízes ganharem protagonismo. A limitação de mandatos dos políticos fez com que, perversamente, estes se mantivessem até ao fim dos dois (no caso do Presidente da República) ou três mandatos (no caso dos presidentes de Câmara), desvalorizando totalmente o papel da oposição e o próprio debate político, crítico para o escrutínio dos executivos e da alternância. Restava a judicialização da política para se poder afastar políticos antes do limite de mandatos. Nesta senda populista, os juízes e o próprio Ministério Público ganharam protagonismo e puderam exigir um estatuto remuneratório adequado ao prestígio social que achavam possuir, ao mesmo tempo que se deixavam infiltrar por estruturas de poder informais, que lhes deram a sensação de estarem acima de todos e, até, às vezes, da própria lei.
Marcelo Rebelo de Sousa reflete exatamente a fraqueza dos políticos diante da judicialização da política. Tudo por erros próprios do regime, pelos efeitos perversos da limitação de mandatos e por leis mal feitas.
Começo a acreditar que, sem uma forte inversão destas coisas, o ocaso deste Regime Republicano pode começar a desenhar-se no horizonte.
Rui Teixeira Santos
Professor universitário