Não há ninguém que não guarde recordações do passado. Da infância à idade adulta, da família aos amigos, do trabalho aos tempos de lazer, há sempre coisas que nos vão marcando e que recordamos para o resto da vida. Ficam a fazer parte da nossa ‘essência’.
A minha vida profissional, por exemplo, está cheia de recordações. Dos locais por onde passei, dos caminhos que tive de percorrer para lá chegar, dos doentes que fui acompanhando e da maneira como eram tratados naquele tempo, daquilo que aprendi com os mais velhos, dos fármacos disponíveis na altura, enfim, tantas lembranças que jamais se apagarão da minha memória.
É por isso que não posso aceitar e procuro corrigir logo os doentes quando me dizem: «O meu passado é para esquecer, tantas foram as coisas más que me aconteceram». «Não deve pensar dessa maneira», contraponho. «A vida é isto mesmo. O importante é nunca cruzar os braços e não desistir. Talvez esses acontecimentos negativos o tenham ajudado a perceber como deverá ser a sua vida no futuro. As experiências mal sucedidas ajudam-nos a crescer». Por outro lado, na área clínica, também não vejo razão para cortar radicalmente com o passado, lá por que agora as orientações são diferentes. Ainda conservo esquemas terapêuticos antigos, desde que os doentes estejam controlados, tanto na medicação como nas medidas não farmacológicas.
O passado tem para mim um significado importante, pelo que olho para ele com respeito e muita atenção.
Fora da Medicina, trago hoje aqui uma ‘viagem’ que relembra os meus tempos de criança, numa terra que, além de Setúbal, tenho igualmente no coração: Torres Vedras. Cidade dos meus avós (paternos), onde fui batizado e passei, mais tarde, longas temporadas no Verão. Parece que ainda estou a ouvir o barulho da água a correr da torneira para uma bilha de barro, onde se conservava fresca ao longo de todo o dia. Que saudades! Eu acordava com aquele som característico.
Transmiti a um torriense ilustre, amigo da família, cujos pais e avós moravam perto dos meus, o meu desejo de lá voltar e percorrer a pé todos aqueles recantos e ruas estreitas. Este amigo não se fez rogado – e, apesar da sua agenda preenchidíssima, conseguiu encontrar um sábado para essa tarefa. E assim foi. À hora marcada (um cumpridor nato dos horários), lá estava ele com a simplicidade que o caracteriza (a sua imagem de marca) à porta do simpático Stay Hotel, onde pernoitámos para iniciarmos a visita.
Acompanhado pela irmã Sofia e pelo cunhado José Luís, receberam-nos de braços abertos – a mim e à São, minha mulher –, enquanto os nossos pais e avós, a verem-nos do Céu, rejubilavam de alegria. Atravessámos o jardim e entrámos na Igreja de Nossa Senhora da Graça, onde se encontram as relíquias de S. Gonçalo de Lagos. Ficaram-me na memória aqueles fantásticos azulejos do séc. XVIII na sacristia, que chamam logo a nossa atenção. Junto ao claustro, o Museu Leonel Trindade recorda episódios históricos e dispõe de peças arqueológicas raras. No centro histórico, foi com mágoa que já não encontrei a Ourivesaria Santana (cuja gestão tinha sido entregue pelo meu avô ao conhecido torriense Emílio Luís Santana) e também a Casa Hipólito, da qual restam apenas as ruínas.
A antiga Câmara – com o pelourinho e com uma única coluna a recordar velhos tempos –, o Chafariz dos Canos – fonte única em Portugal do séc. XIV e XVI, em frente à qual se pode ver o que ainda resta das antigas muralhas da vila dos finais do séc. XIV e início do séc. XV – são de visita obrigatória. Na Igreja de S. Pedro parei por momentos em frente à pia batismal do séc. XVI, onde eu e este meu amigo fomos batizados. E seguimos para a lindíssima sala da Irmandade dos Clérigos Pobres, que pouca gente conhece e merece uma visita. As casas onde viveram os nossos pais e avós, mesmo no coração da cidade e bem próximas umas das outras, recordam todo um passado com a saudade a marcar presença. Para depois do almoço ficou a visita ao castelo, donde se avista toda a cidade e arredores – com a qual nos despedimos desta terra, tão querida para mim.
E assim terminou esta viagem pelo passado. Para trás, ficaram recordações e muitas emoções difíceis de descrever. Fiquei com a ideia de que Torres Vedras tinha parado no tempo. É impossível imaginar esta cidade sem lembrar o que lá vivi. Assim, aos meus olhos, esta terra continua viva e bem presente! E como se voltar a Torres não fosse só por si um motivo de prazer e de satisfação redobrada, o que não dizer do ‘guia’ que nos acompanhou, figura de relevo a nível nacional, um conceituado historiador e a pessoa que é a nível da Igreja?
Um pouco por tudo isto, mas sobretudo pela sua amizade, como lhe estamos gratos, Senhor D. Manuel Clemente!