As narrativas poderosas – partilhas de crenças causais (na aceção de Hume) e princípios – são os pré-requisitos de mudanças políticas. Não precisamos de ser versados em epistemologia para perceber como se constroem crenças e conhecimentos, mas intuitivamente sabemos da complementaridade dos dois na definição e natureza das ideologias. Comparar direita e esquerda, nos dias de hoje, implica a perceção de uma subtil diferença epistemológica na narrativa: diante da evidência de falhas do capitalismo, a direita procura explicar as vantagens e desvantagens do que existe e a partir daí corrigir, regular e construir, enquanto a esquerda arrasa o que temos para propor um ‘mundo melhor’, uma solução de redistribuição nova, sem atender ao caminho percorrido para se chegar até aqui. Realismo versus niilismo.
Percebendo o fracasso do discurso meramente económico – pois o capitalismo que existe (as is) não se pode comparar com o socialismo que não existe – e depois do colapso da utilização da engenharia financeira do capitalismo na promoção de políticas sociais e no combate à pobreza, a esquerda insiste – e a Comissão Europeia segue como momento refundador – em usar as ferramentas do capitalismo e de mais regulação, agora, para pagar o ‘plano’ European Green Deal e ‘reduzir’ o risco climático, enquanto os EUA libertam o país da regulação excessiva, protegem o emprego e a liberdade empresarial, apostam na inteligência artificial, computadores quânticos e 5G e ainda plantam um trilião de novas árvores.
Há de certo modo na cultura da esquerda, que a Europa incorpora, uma disrupção criativa, um sentido de novo apocalipse que a burocracia transforma em risco nulo, num voluntarismo excessivo que só pode acabar mal, porque mata a sociedade civil.
Atualmente, essa cultura revolucionária, disfarçada pela arrogância intelectual, asfixia o empresário e silencia as classes médias, deixando o espaço público para o pessimismo das elites intelectuais da esquerda ou para as classes baixas sensíveis ao discurso justicialista do populismo.
O que se passa é que a esquerda tende a institucionalizar o risco no Estado que, pela sua própria natureza, vai burocratiza-lo e obviamente, reduzi-lo ao ponto de quase o aniquilar, o que necessariamente induz baixos crescimentos económicos e estagnação. Esse é o principal fracasso do socialismo democrático em Portugal e não o resignado ‘poucochinho’ ou a «austera, apagada e vil tristeza» do Canto X de Os Lusíadas, citado, a semana passada, por um Júdice florentino.
Uma abordagem moderada implica a ideia de reformismo ou seja, a ideia de conservação-correção para a conservação, de preservação do existente, numa atitude de ‘amor’ pelo real, como sugeria Scruton. É portanto, avessa a disrupções revolucionárias, à dialética da negação. Os reformistas e moderados não assumem os riscos no Estado. Quem assume riscos são os empresários que, no final, acabam sempre ultrapassados. E, tragédia necessária, é essa heroicidade do empresário que explica como a inovação e o risco criam emprego e garantem crescimento e recursos ilimitados.
Reduzir a questões económicas a diferenciação entre o PS e o PSD é simplesmente não ter entendido o que é o PSD. O que os distingue é a questão cultural da definição do papel do Estado na sociedade: o PS considera que o Estado deve garantir os direitos das minorias e assumir os riscos dos indivíduos e assim, burocratizar comportamentos e coletivizar o risco, como uma espécie de ‘seguro universal’ de um Estado Social de Garantia; e, pelo contrário, o PSD entende que a sociedade deve preservar o que tem, a sua ética como expressão fundamental da liberdade e não deve permitir ao Estado a experimentação social ou o risco económico, ao ponto de asfixiar a livre iniciativa e, portanto, comprometer a inovação e o crescimento do país ou subverter os costumes e os valores da ordem social.
Rui Rio venceu as diretas e isso, no contexto atual, significa que o PSD deixa de assumir a representação dessas classes empreendedoras, dos pequenos e médios empresários, e passa a olhar sobretudo para os votos dos funcionários públicos. Ou seja, despreza Sá Carneiro e Cavaco Silva e confirma a indiferenciação entre o PS e o PSD, na linha de Mota Pinto e Sousa Franco. O primeiro morreu e o segundo acabou ministro das Finanças no ‘pântano’ de António Guterres. Porém, não foi o fim da história: depois de um e de outro, o PSD soube recuperar e voltar ao poder.
Para já, Rui Rio vai limpar o PSD dos seus adversários. Não cometerá, de novo, a ingenuidade de os deixar dentro de casa. Com isso, garante estabilidade durante a legislatura e provavelmente, a próxima legislatura a António Costa.
O próximo orçamento será certamente também aprovado, em novembro, com os votos do PSD. Será a mexicanização, com a hegemonização do PS e a estabilidade ao centro. Finalmente, o sistema de partidos muda de natureza, como Costa e Rio sempre quiseram.
Rui Teixeira Santos
Professor universitário