As manhãs na Rua Garrett são tudo menos calmas. Desde a Livraria Sá da Costa até à pastelaria A Brasileira, os passeios resumem-se a pouco mais do que um metro. As obras que estão a ser feitas pela Câmara Municipal de Lisboa desde o início de Janeiro estão a deixar os comerciantes de cabelos em pé. A famosa estátua de Fernando Pessoa está agora tapada e rodeada de buracos e máquinas e as esplanadas das pastelarias Benard e d’A Brasileira desapareceram. Assim como os clientes que são cada vez menos.
Estas obras não estão relacionadas com a Zona de Emissões Reduzidas (ZER), cujo projeto foi anunciado na semana passada pela autarquia, mas sim com a reestruturação do pavimento. Aliás, naquela zona é comum haver, de vez em quando, uns enormes buracos, porque a calçada cede. O terreno começou a ficar oco e, por isso, é necessária uma intervenção. A obra está a ser contestada pelos comerciantes da zona, que veem o volume de vendas descer exponencialmente. Quem faz por ali negócio admite que as obras têm de ser feitas, mas não concorda com a forma como está a ser conduzida desde o início – preferiam uma obra por fases que não tapasse a visibilidade às lojas daquele quarteirão.
Maria Augusta, proprietária da Benard, conta que, antes do início das obras, julgava que iria perder cerca de 50% da faturação – o equivalente ao dinheiro que faz na esplanada. Neste momento, percebe que perdeu muito mais – as vendas desceram cerca de 75%. A falta de clientes obrigou-a a dar férias antecipadas a alguns funcionários, dispensou dois pasteleiros e fecha portas duas horas mais cedo do que o habitual. «As pessoas sobem a rua, veem este aspeto de obras e voltam para trás. Até os guias turísticos vão dar a volta e já não passam por aqui», acrescenta.
Estas obras são, dizem os comerciantes, o início do fim do Chiado. «Querem matar o Chiado e estão a fazê-lo aos bocadinhos», diz Maria Augusta, que acrescenta que a transformação da Rua Garrett numa rua pedonal vai estragar ainda mais o negócio. «Uma zona pedonal é uma zona plana, vir da Baixa até aqui a pé para as pessoas mais velhas é impensável», diz.
A zona ZER
O tema estende-se à zona da Baixa e a opinião é unânime: «Nada de bom se avizinha». Entre lãs e botões da retrosaria Adriano Coelho, uma das lojas históricas da cidade de Lisboa, na Rua da Conceição, Guilherme conta que, a partir de junho «vai ficar uma loucura». «As pessoas só não trazem o carro para dentro da loja, porque não podem. E tenho uma vendedora da Margem Sul que tem aqui na Baixa uns 20 clientes e está em pânico, porque ela tem de carregar os mostruários». O sócio da retrosaria coloca ainda a questão das pessoas que vão à Baixa e querem comprar objetos maiores, como televisões ou mobílias. Nesses casos, ou vai a pé até ao parque de estacionamento, ou utiliza os transportes públicos.
O antigo elétrico 28 resiste e vai continuar a passar na Rua da Conceição. Em ruas como esta, onde só transportes e carros com autorização podem circular, os passeios vão ser alargados e construídas ciclovias.
As futuras mudanças também trazem vantagens. Orlando, um dos sócios da retrosaria, encarrega-se de dizer uma delas: «Mais silêncio vai haver, porque às vezes nem nos conseguimos ouvir uns aos outros aqui dentro da loja com os carros a passar e a buzinar». Orlando não é contra as alterações, mas considera que têm de ser bem feitas. Para isso, «deviam primeiro garantir mais transportes e só depois cortar o trânsito», diz.
As reclamações estendem-se até à loja gótica Triparte, na rua dos Fanqueiros. Camisolas dos Iron Maiden não faltam, e clientes também não, pelo menos por agora. «É ridículo, nós temos clientes que vêm de Mafra, Ericeira e Margem Sul, portanto só têm a hipótese de vir de carro. Isto afasta os clientes, sem dúvida», diz Anaïs Gomes, gerente do espaço. Aliás, Anaïs Gomes é uma das mais de 3500 pessoas que já assinou a petição ‘Contra as Obras para Fechar a Baixa de Lisboa’. «O problema de Lisboa não são os carros, é a má gestão», lê-se na petição.
O caos provocado pelas carrinhas que param em cima dos passeios já é uma característica da Baixa. Mas, a partir de junho, isso deixa de ser problema – o município promete mais espaços destinados às cargas e descargas e mais restrições. «As operações de cargas e descargas em termos gerais estão autorizadas apenas no período entre as 24h e as 6h30», refere a autarquia no seu plano.
Mais longe da Rua dos Fanqueiros, fica a Rua Nova do Almada, uma das ruas que vai ficar sem trânsito. A par desta, também a rua da Prata, a rua Garrett, o Largo do Chiado e o Largo das Belas Artes ficarão pedonais. Por ali, as queixas são as mesmas: «Os clientes já são poucos, nunca há estacionamento aqui na rua». «Se tirarem os lugares de estacionamento e o trânsito, então é que o negócio morre, vai ser muito complicado», diz uma das empregadas da retrosaria Senna, uma das poucas lojas de comércio tradicional daquela rua.
Menos carros, passeios mais largos, mais ciclovias e mais restrições para os residentes. Estes últimos terão disponíveis dez convites para os visitantes que queiram receber. Ou seja, têm disponíveis dez lugares de estacionamento, que incluem visitas, serviços ou entregas. Além dos lugares de estacionamento dentro da ZER, os visitantes poderão também deixar os carros nos parques de estacionamento fora da zona exclusiva – como no parque dos Restauradores, Martim Moniz, Largo Camões, Campo das Cebolas, Espaço Chiado, Chão do Loureiro ou Praça D.Luís I.
Uma cidade mais amiga do ambiente, com menos emissões, mas menos amiga dos comerciantes, diz quem lá trabalha.