«…Um homem semeou boa semente no seu campo. Enquanto dormiam os homens, veio o inimigo, semeou o joio no meio do trigo e retirou-se. Quando a erva cresceu e deu fruto, apareceu também o joio. Os servos do dono da casa foram ter com ele e perguntaram-lhe: ‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde vem, pois, o joio?’. ‘Foi um inimigo meu que fez isto’, respondeu ele. Disseram-lhe os servos: ‘Queres que vamos arrancá-lo?’. ‘Não’, disse ele, ‘não suceda que, ao apanhardes o joio, arranqueis o trigo ao mesmo tempo. Deixai um e outro crescer ao mesmo tempo até à ceifa e, na altura da ceifa, direi aos ceifeiros: ‘Apanhai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado e recolhei o trigo no meu celeiro’». (Mt 13, 24).
Esta passagem da parábola a que hoje recorri para servir de base ao meu artigo, mesmo com tantos anos de história, pode também aplicar-se aos tempos que estamos a viver. A nossa sociedade está doente. Há muito joio na seara da nossa vida, de tal modo que qualquer um de nós pode cair na tentação de o querer arrancar – à semelhança dos servos daquele agricultor.
Esse joio é bem visível, por exemplo, nos casos de violência doméstica, um flagelo que nos envergonha e não para de crescer; nas agressões aos professores pelos alunos, dentro e fora das escolas; nos tribunais, onde magistrados são agredidos por arguidos; nos hospitais, onde médicos e enfermeiros são agredidos por doentes; nos centros de saúde, onde os médicos são ameaçados pelos utentes se lhes recusarem uma ‘baixa’, instalando o pânico entre os médicos de família. Tudo isto numa escalada de violência que parece não ter fim.
Ao que nós chegámos! Perante isto, o nosso primeiro impulso é ‘pagar com a mesma moeda’ – o que é errado, pois a violência gera ainda mais violência. Mas não reagir e cruzar os braços, como tem acontecido até aqui, também não é solução. Sabemos que o joio cresce lado a lado com o trigo, mas é preciso tomar medidas; e cada um deve cumprir a sua obrigação, fazendo o que estiver ao seu alcance para que esse joio não prevaleça sobre o trigo.
Compreende-se, em certa medida, os problemas das pessoas. O desespero perante as dificuldades da vida pode levá-las aos excessos, numa espécie de ‘luta pela sobrevivência’. Como profissional de saúde, mas colocando-me no papel dos utentes, percebo perfeitamente não ser nada fácil lidar com o atual sistema, carregado de vícios, de dificuldades, de exageros burocráticos, que fazem perder a paciência.
Depois, o ambiente de impunidade que paira no ar vai também abrindo caminho à violência, enraizando-se no espírito de alguns a ideia de que tudo lhes é permitido.
Do outro lado da barricada, veem-se profissionais empenhados, a darem o seu melhor, procurando ajudar os outros dentro deste cenário desolador; ainda por cima, sem verem o seu trabalho reconhecido, expostos sem segurança alguma à fúria dos mais descontentes – prontos a descarregar a agressividade em quem menos culpa tem.
E assim vamos caminhando, enquanto tivermos forças para isso, à espera da tão desejada reestruturação do Serviço Nacional de Saúde, que mais parece uma miragem.
São estas indefinições, e este adiar constante dessa medida mais do que evidente, que obrigam os profissionais a trabalhar de forma deficiente e sem motivação, provocando nos outros insatisfação e um descontentamento generalizado. Que, como se disse, às vezes acaba em violência.
Quando é que os responsáveis pelo setor percebem que não podemos continuar assim? Se fecharmos os olhos à realidade, deixando para amanhã o que devíamos ter feito ontem, ninguém se queixe das consequências a curto e médio prazo que aí vêm, nem dos problemas que teremos pela frente. Passar a vida a remediar, em vez de prevenir, não é solução para nada e nunca passaremos do mesmo patamar!
Deixemo-nos levar pela sabedoria do agricultor. Onde há trigo, não faltará também o joio; mas tenhamos presente que o trigo será recolhido no celeiro e o joio atado em feixes para ser queimado.
Por isso, é preciso estarmos atentos e vigilantes, trabalhando no dia-a-dia com espírito de missão, não vá chegar a hora da ceifa e o mais importante ficar por fazer. Pensemos nisto hoje. Quem sabe se amanhã não será já tarde demais?