Mercader, o canalha, pôs fim à vida de Leon Trotsky mas Trotsky salvou a dele. Tinha acabado de ser atingido na cabeça com uma picareta, esvaía-se em sangue, ainda reunira forças e coragem para lutar com o agressor até à chegada dos seus guarda-costas, e soltou a frase piedosa: «Não o matem! Esse homem tem uma história para contar».
O problema de Jaume Ramón Mercader del Río, um catalão trazido ao mundo por Eustaquia María Caridad del Río Hernández , com a colaboração indispensável de Pau Mercader Marina, a 7 de Fevereiro de 1913, em Barcelona, é que mentia com todos os dentes que tinha, pelo que a tal história que Trotstky esperava que ele contasse seria sempre muito pouco credível. A sua existência estava pejada de trampolinices dignas de Rocambole, aquele retorcido personagem de Ponson du Terrail.
Caridad era uma mulher rija. Descendente de uma família abonada de Santiago de Cuba, fugiu para Barcelona logo após a independência da ilha, em 1898, onde se casou com o poderoso industrial Pau. Dedicaram-se a fabricar filhos em barda, tiverem cinco, mas Caridad gostava mais da boa-vai-ela do que propriamente passar o tempo em redor de alcofas, fraldas e biberões. Em seguida levou ao extremo o seu espírito subversivo e juntou meia dúzia de outro lunáticos para pegarem fogo à fábrica do próprio marido. Pau Mercader não encontrou nenhum motivo para rir da facécia. Internou a esposa num asilo para malucos mas Caridad não tardou em dar às de vila-diogo e escapulir-se para França com os filhos a tiracolo, deixando-se encantar pelo anarquismo antes de se transformar numa estalinista fanática e agente do NKVD (Narodniy Komissariat Vnutrennikh Diel, o Comissariado do Povo Para Assuntos Internos), mais tarde transformado na KGB.
Ramón foi, dessa forma, um fruto das circunstâncias que o rodeavam. Alimentou um ódio profundo aos inimigos do Partido Comunista Soviético e, ainda na casa dos 20 anos, regressou a Barcelona para ajudar na organização do muito incipiente Partido Comunista Espanhol.
A sua persistente diligência e humilde subserviência foi premiada. Chamado a Moscovo, recebeu um treino intenso. Aprendeu tudo sobre como cometer fraudes, sabotagens e assassinatos. Deram-lhe o nome de código Gnomo e devolveram-no a Paris sob a aparência de um estudante abastado com o psudónimo de Jacques Mornard. Como a grande maioria dos biltres, Mercader era um blasonador. Insinuou-se junto de uma mulher chamada Sylvia Ageloff, de naturalidade americana, grande confidente de Lev Davidovich Bronstein (Leon Trotsky) que, após liderar a Facção de Esquerda do PCUS, caíra em desgraça perante o crescente domínio bolchevique da União Soviética comandado por um mamífero de maus fígados: Ioseb Besarionis dze Jughashvili (Joseph Stalin). A lábia de Rámon funcionou depressa e bem. Seduziu Sylvia e não tardou a viajar com ela para Brooklyn, onde a moça nascera, desta vez sob o nome de Frank Jackson, possuidor de um passaporte canadiano. Decorria o ano de 1938. O passo seguinte seria a Cidade do México. Não se limitou a levar consigo Ageloff. Levou igualmente a mãe, Caridad. Os soviéticos chamaram à missão que lhe foi confiada Matb – Mãe, pois claro. O canalha rondava agora a porta de Leon Trotsky. Cada vez mais próximo do seu momento facínora.
Caça ao homem
Leon Trotsky escolheu esse alónimo para que jamais esquecesse o tempo que passara degredado na Sibéria. Trotsky era o nome do seu carcereiro. Quando chegou ao México, em janeiro de 1937, fugido da Grande Purga estalinista de 1936-37, já passara por vários exílios, da Turquia à Itália, da França à Noruega. Viajara a bordo de um petroleiro chamadoRuth, na companhia de sua mulher, Natalia Ivanovna Sedova, que partira do porto deHurum, e foi recebido calorosamente pelo presidente mexicano, Lázaro Cárdenas del Río, um fulano que ficou para a história por ter fomentado a reforma agrária e por ter nacionalizado a indústria do petróleo. Diego Rivera, o grande pintor mexicano, membro do Partido Comunista do México, que tinha um nome levado da breca – Diego María de la Concepción Juan Nepomuceno Estanislao de la Rivera y Barrientos Acosta y Rodríguez – pôs a sua casa, La Casa Azul, em Coyoacán (o Lugar dos Coiotes), nos arredores da Cidade do México, à disposição de Trotsky. Leon mudou-se para lá alegremente. Afinal era um dos pontos mais boémios e intelectuais da capital mexicana. Não tardou, no entanto, a abusar da munificência do seu anfitrião e a dar largas aos seus excessos de lubricidade infiltrando-se na cama de Frida Khalo, a famosa pintora que nascera precisamente emCoyoacán e se casara com Rivera em 1929, a despeito da diferença de idades – ela tinha menos 20 anos do que ele.
Diego aceitava bem os enlevos romântico de Frida, que sempre assumiu a bissexualidade, com outras mulheres, mas não gostava de a ver embeiçada por homens, levando bastante a peito aquele amancebamento, e não serei eu a censurá-lo por isso. Depois de uma berraria que se ouviu em quilómetros em redor, assustando os coiotes, pôs Trostsky no olho da rua e este teve de se mudar para a Avenida Viena, não muito longe da CasaAzul, mas suficientemente distante para evitar um par de bofetadas bem assentes pelo corpulento mexicano.
A fatalidade desenhava-se no horizonte.
Outubro de 1939: Frank Jackson chegava à Cidade doMéxico sob o pretexto de se ir lançar numa série de investimentos financeiros. Ageloff segui-lo-ia umas semanas mais tarde. Nada por acaso, como está bem de ver: a sua irmã Rita Ageloff tornara-se secretária pessoal de Leon e conquistara a sua confiança através da maior das fraquezas do antigo sucessor de Lenine – a sedução.
Não se pode dizer que os dias de Trotsky tivessem sido monótonos até aí. Já vira a sua casa ser atacada por um grupo estalinista comandado por Pavel Sudoplatov, e do qual fazia parte o camarada e amigo de DiegoRivera, David Alfaro Siqueros, outro dos grandes nomes do muralismo mexicano e estalinista indefetível. No dia 24 de maio de 1940, dormia tranquilamente na sua cama quando a pandilha deSiqueros entrou pelo seu quarto a coberto da noite e disparou uma rajada de metralhadora que, talvez por um milagre subitâneo, o deixou sem um único buraco na carcaça. Sudoplatov escreveu, mais tarde, nas suas memórias, que recebera ordens diretas de Lavrentiy Beria, um escroque sanguinário, chefe da polícia política soviética: «Quero Trostky eliminado em menos de um ano!»
A picareta!
Leon Trotsky podia ser um tipo com sorte, mas não tinha sete vidas como os gatos. Quatro meses mais tarde, a 20 de agosto, recebeu a visita de um admirador profundamente interessado numa série de manuscritos da sua autoria, libelos contra a política férrea de Estaline. O bajulador era nem mais nem menos do que Frank Jackson, ou Ramón Mercader, se preferirem. Rita Ageloff cumpriu a sua parte e manteve os seguranças de Trotsky o mais distantes que foi possível do escritório do patrão.
A reunião foi calorosa. Já os serviços de proteção a Lev Davidovich roçaram o ridículo e bateram no ponto mais fundo da incompetência.
Mercader não era propriamente um amigo muito lá de casa. Visitara Trotsky por duas ou três vezes, meras trocas de cortesia entre simpatizantes da mesma causa, ou pelo menos assim tidos pelo ingénuo Leon. Nesse fatídico 20 de agosto trazia nos bolsos da sua largueirona gabardina beije um revólver, uma adaga e uma picareta. Ora, francamente! Se isso era lá parafernália que se carregasse para uma sossegada tarde de estudo! A eternidade não registou os laços de intimidade que uniam Rita Ageloff aos guarda-costas de Trotsky mas, aí, cada um tire as suas conclusões. Que Ramón não passou pelo crivo de revista alguma, isso é tão certo como estar hoje em dia morto e enterrado no cemitério de Kuntsevo, em Moscovo, sob a epígrafe de Ramón Ivanovich Lopez, Herói da União Soviética, a Ordem de Lenine. O que o levou a escolher a picareta em vez da faca ou da pistola, só ele o poderá responder, se estiver disposto a dar entrevistas, o que é pouco provável. Facto é que a picareta acabou por não ser a melhor das opções, como se veio a provar.
O menino da mamã
Jaume Ramón Mercader del Río foi o ascoroso canalha de Coyoacán mas também um menino da mamã Caridad e a coragem não era uma das suas virtudes, se é que tinha alguma. Não teve pejo em aproveitar um momento em que Trotsky se debruçava, atento, sobre um dos documentos que estavam na sua secretária para o golpear brutalmente com a picareta no alto do cocuruto, e ofereceu pouca resistência quando os seguranças, finalmente alertados pela gritaria do infeliz Leon, o derrubaram e se preparavam para o desfazer de pancada não fora a tal frase famosa de Trotsky que o poupou: «Ele tem uma história para contar!»
Enquanto a vítima era conduzida ao hospital mais próximo, onde morreu passadas cerca de 27 horas, Mercader foi sujeito a um interrogatório cerrado e muito pouco cortês. Afirmou que se chamava Jacques Morner, que era um trotskista desiludido e que alimentava uma profunda raiva contra Leon: «Tratou-me como se fosse um bocado de papel sem utilidade. Amachucou-me e deitou-me fora. Não passava de um velhaco que utilizava a luta dos trabalhadores como forma de se promover política e socialmente. Destruiu o meu futuro, as minhas esperanças, os meus afetos e a minha natureza».
Os métodos de investigação estavam longe de ser o que são hoje. Só uma década depois se confirmou, através das impressões digitais, a verdadeira identidade de Morner: Ramón Mercader. Condenado a 20 anos de prisão no Palácio de Lecumberri, sarrazinava a paciência dos guardas com a mesma canção de embalar que entoava horas a fio em catalão: «Què li darem a n’el Noi de la Mare?/Què li darem que li sàpiga bo? Panses i figues i nous i olives/panses i figues i mel i mató». Algo que se poderá traduzir como: «Que daremos à mãe do menino?/Que lhe daremos que ela possa gostar?/Passas e figos e nozes e azeitonas/Passas e figos e mel e queijo-mató».
Convenhamos que ouvir esta lengalenga sem parar era como ter a cabeça furada com uma picareta, sem querer estar aqui a fazer comparações espúrias. Basicamente, Ramón era um chato do pior, com evidências de demência ou, pelo menos, conhecendo-lhe a índole dissimulada, um bom imitador dessas características. Para além da cantilena, manteve-se calado como um rato. Entretanto, Sylvia Ageloff falhou uma tentativa de suicídio e ficou a saber-se que Dona Caridad tinha estado num automóvel à porta da casa da Avenida Viena no dia da carnificina esperando por ele para conduzi-lo para fora do país.
No dia 6 de maio de 1960, Ramón Mercader, o canalha de Coyoatán, menino de sua mãe, voltou a saber o que era a liberdade. Tinha 47 anos. Nunca conheceu pessoalmente o seu mentor, Estaline, mas continuou a sentir que fora incumbido de uma missão divina e, como tal, também nunca revelou a sua verdadeira identidade. Limitava-se a ser um projétil. Depois da picareta, o silêncio passou a ser a sua arma. Ora, vejam bem, até as cadeias têm a sua dose de ironia: repartiu a cela com David Alfaro Siqueros que por muito pouco não o tinha despachado para outro mundo naquela malfadada cena dos tiros na noite. Mas Siqueros tinha amigos influentes como Pablo Neruda e William S. Burroughs, e saiu de Lecumberri muito antes de Ramón ter, finalmente, transposto os umbrais da liberdade e seguir para Cuba onde Fidel Castro o recebeu como um príncipe. Leonardo Padura Fuentes escreveu as suas aventuras em El Hombre que Amaba a los Perros. Depois Mercader cumpriu o seu destino soviético, mas Moscovo e Estaline não se mostraram particularmente agradecidos para além da medalha que lhe penduraram ao peito. Desiludido, se é que um pulha se desilude, voltou para Cuba e, em 1977, fez um pedido oficial para poder viver na sua Catalunha natal.
Santiago Carrillo, o chefe do Partido Comunista Espanhol, intercedeu por ele na condição que escrevesse as suas memórias sobre o homicídio de Trotsky, divulgando todos os nomes envolvidos na operação. Uma espécie de purga, convenhamos. Burocracia a mais para um homem que podia gostar de cães mas que, ao tempo, não se sentia particularmente bem de saúde. Recusou: «Prefiro morrer numa terra que não é minha do que trair os meus camaradas!» Bateu as botas em Havana, cidade de sua mãe, no dia 18 de outubro de 1978. Foi incinerado e as suas cinzas voaram discretamente para Moscovo. O seu túmulo diz muito simplesmente: Ramón Ivanovich Lopez, Barcelona 1913 – Havana 1978. Muito pouco para quem fez da picareta a arma mortal mais esdrúxula do mundo. No museu do KGB, no Yauzsky Boulevard, nas margens do Yauzsky, um afluente do rio Moscova, há uma foto de Ramón, muito sério, devidamente aperaltado. Toda a maldade dos seus olhos ficou escondida por detrás dos vidros dos óculos. Uns dias antes de enfrentar cara a cara a infame Senhora da da Gadanha, desabafou com um dos seus raros amigos: «Estou sempre a ouvi-lo. O grito, quero dizer. Aquele grito horrendo. Foi o som mais doloroso que escutei na minha vida. E eu sei, tenho a certeza, que ele me espera do lado de lá». Só Ramón Mercader,o canalha de Coyoacán, e Liev Davidovich Bronstein poderão confirmar se voltaram realmente a encontrar-se. Se assim foi, talvez Mercader tenha finalmente contado a história que Leon esperava dele. Mesmo sabendo que não passava de um biltre no qual não se podia confiar.