Barbara Tuchman não foi levada a sério, num mundo académico excessivamente marxista, quando sugeriu a sua história das gripes: entendia que a história política era influenciada pelas gripes (leia-se, vírus) – das febres na queda do Império romano, ao renascimento urbano por causa da peste negra, até à gripe espanhola e a grande guerra.
O coronavírus (COVID-19) faz agora a sua história: em menos de uma semana desapareceram as contestações em Hong Kong, Macau foi encerrada, os dirigentes desalinhados com Xi Jinping foram presos, demitidos e culpados de não conterem a epidemia e já só falta mais uma qualquer razão de saúde pública para a China ir ‘salvar’ a Formosa. Tudo sem reação do Ocidente, que parece apenas aguardar a oportunidade de vender novas vacinas… Até podemos imaginar que o vírus acaba de vez com a própria praça de Hong Kong – o que a longo prazo seria irrelevante para a China milenar – mas criaria oportunidades à nova Londres pós-Brexit ou à nossa agricultura, como dizia a ministra.
– How convenient!
Como no século XV, também agora a China se encerra ao mundo, sacrificando a sua economia, a sua população e o ganho imediato, mas assegurando a hegemonia do poder central.
Não sabemos como apareceu o vírus, mas sabemos que a China o tem controlado, havendo apenas 2% dos casos fora da China. E se, por um lado, o Estado o controla tão eficazmente, por outro estamos perante o esmagamento do indivíduo – com cidades inteiras de quarentena – e a afirmação da razão de estado que a burocracia garante através de atos administrativos benignos.
Mas para nós, no Ocidente – que perdemos tantas vezes a noção do poder e das condições do seu exercício, e que também aceitamos a burocracia pública assética e benevolente – o importante é perceber como se afirma um poder estatal tão hegemónico, para que o possamos evitar, numa altura em que o tropismo totalitário parece ameaçar, à direita e à esquerda, a democracia política.
O Estado não cresce por acaso, muito menos o Estado moderno. Ele afirmou-se no pós-guerra por uma única razão: a destruição da sociedade civil, do seu núcleo familiar, durante as guerras. A substituição da família destruída nas duas guerras e depois a forte urbanização explicam a quebra dos laços familiares que durante milénios consubstanciaram os apoios aos necessitados e todas as respostas sociais.
O sucesso da receita foi tal que, logo nos anos 50 do século passado, começámos a assistir ao boom da população em todo o mundo.
E é aqui que entra mais uma história de poder. Foi por uma questão de hegemonia na ordem internacional que a Fundação Rockefeller defendeu as narrativas do «controlo populacional» e das políticas de «controlo da natalidade» e «planeamento familiar», que vieram depois a ser adotadas pela ONU e impostas à China e à Índia ou em África, contra os empréstimos do Banco Mundial e os apoios da ONU. Houve consequências: o envelhecimento demográfico da China, por causa da política de um filho, é hoje o seu maior problema económico e a castração forçada e maciça de mulheres na Índia de Indira Gandhi, imposta pela ONU, foi um crime contra a humanidade. Rockefeller e a ONU não tinham preocupações malthusianas (ridicularizadas desde do século XVIII) mas, com isso, fragilizaram a família em Estados menos estruturados, facilitando assim a hegemonia dos poderes centralizadores do Estado.
Também no Ocidente essa narrativa estatista fez o seu caminho, partindo, consciente ou inconscientemente, da destruição da família como núcleo base da sociedade.
Há uma agenda – curiosamente pensada em certos círculos da esquerda, sobretudo, americanos – como agora, a ‘luta do século’ contra as alterações climáticas – que têm em vista exatamente atacar a família, fragilizar o indivíduo e assim, afirmar o Estado e permitir o seu crescimento e o da sua nomenclatura. Desde o divórcio, ao aborto e agora, com a eutanásia (quando as pessoas dispõem do testamento vital, do PRT e dos cuidados paliativos), o que está em causa é sempre a diminuição da família e o aumento do Estado.
Seja por via dos direitos ou da relativização da vida (aceitação do aborto, da eutanásia ativa ou do suicídio assistido), o que está em causa é o papel da família enquanto base da comunidade e conferir-se ao Estado o poder de escolher alguém para tirar a vida a outro. O que está em causa é o poder do Estado e em Portugal, pior ainda, neste caso é mesmo o poder dentro do próprio Estado.
É que a escolha deste momento para lançar o tema da eutanásia – contra o parecer de todas as entidades científicas consultadas e a vontade dos cidadãos – não tem que ver apenas com o facto de Rui Rio ter facilitado a votação no Parlamento, mas serve sobretudo, para a esquerda fragilizar o Presidente da República, que sairá, com veto ou sem ele, sempre mal, em vésperas da reeleição. É mais uma questão de poder e de afirmação do e no próprio Estado. Afinal, o mesmo que a China consegue fazer com a sua gripe!
Rui Teixeira Santos
Professor universitário