São centenas os processos decididos pelo Tribunal da Relação de Lisboa quando era presidido por Luís Vaz das Neves que estão a ser passados a pente fino pelos investigadores da operação Lex. O objetivo é perceber até onde terá chegado a alegada teia de adulteração de escolha de juízes que os investigadores acreditam ter contado com a participação do então presidente daquele tribunal. Mais: querem ainda perceber qual o sentido das decisões proferidas por determinados magistrados, sobretudo em casos onde possa ter havido uma intervenção na distribuição. Ao que o SOL apurou, no total, serão cerca de 400 os processos que estão a ser analisados – na Relação de Lisboa dão entrada anualmente mais de 12 mil processos.
A investigação suspeita que nem só o juiz Rui Rangel e a sua ex-mulher Fátima Galante beneficiariam do alegado vício na atribuição de processos. Rui Gonçalves é outro desses magistrados.
Rangel pediu a Vaz das Neves para controlar o seu processo
O juiz jubilado Luís Vaz das Neves, presidente da Relação de Lisboa até 2016, é um dos alvos da operação Lex, que investiga suspeitas de corrupção, tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem e branqueamento de capitais. O magistrado, que já foi ouvido pelo MP junto do Supremo, pode vir a responder por crimes de prevaricação e denegação de justiça neste inquérito dirigido pela procuradora Maria José Morgado.
Segundo noticiado pela TVI, o juiz foi apanhado em trocas de sms suspeitas com Rangel – recorde-se que era já do domínio público que para os investigadores Rui Rangel contaria com o apoio do funcionário daquele tribunal (arguido neste processo) Otávio Correia.
Uma das mensagens mais comprometedoras diz respeito a um recurso interposto por Rui Rangel para a Relação de Lisboa. O juiz tinha processado três jornalistas do Correio da Manhã, que publicaram em 2013 uma notícia com o título «Rangel condenado por calote a clínica». A notícia saiu numa altura em que decorriam as eleições à presidência do Benfica, a que se candidatara o juiz desembargador. Mas em primeira instância, os jornalistas foram absolvidos e Rangel não se contentou, recorrendo para o tribunal onde trabalhava.
A 4 de setembro, segundo as mensagens divulgadas pela TVI, Rangel pediu ao advogado que o avisasse quando o processo subisse à Relação, tendo sido avisado que o mesmo subira no dia 6. A 9 de setembro, o próprio juiz Rui Rangel, parte no referido processo, enviou mensagem ao então presidente do seu tribunal, Vaz das Neves, que dava a entender que já haviam falado do assunto: «Luís, bom dia. Desculpa incomodar. Sei que estás na minha terra (Angola). Aquilo do CM já chegou à Relação. Vai ser distribuído na próxima terça».
Logo de seguida, enviou uma segunda mensagem: «Não posso ser de novo injustiçado só porque me chamo Rui Rangel».E, por fim, insistiu: «Por favor liga para lá na 2.ª feira ou diz-me como fazer. Controla a situação. Estou muito preocupado. Diz-me qualquer coisa. Abraço, Rui Rangel».
Do lado de Vaz das Neves a resposta não tardou: «Caro amigo Rangel. Estive na tua linda terra e acabo de aterrar no Rio em trânsito para São Paulo. Manda-me o número do processo para que possa pedir que isto não seja já distribuído sem eu regressar. Abraço amigo, Luís».
«Boa noite caro dr. O processo é o 755/13.2TVLSB, da 1.ª secção cível, juízo 20. Subida ordenada a 4 de novembro. Abraço», respondeu Rangel, que no dia seguinte enviou nova mensagem para confirmar se o presidente não se teria esquecido de si e recebeu a seguinte mensagem: «Tudo! Espero que tenham cumprido as minhas ordens».
O resto da história dá ainda mais sustento às suspeitas: meses depois a decisão proferida pela Relação anulava a da primeira instância e condenava os jornalistas a pagarem 50 mil euros ao juiz por danos não patrimoniais.
Era justificado que o «epíteto de caloteiro» é negativo e afeta «a honra e consideração» devida a qualquer pessoa. O juiz relator foi Orlando Nascimento, que sucedeu a Luís Vaz das Neves na presidência da Relação.
Após recurso do jornal, o Supremo Tribunal de Justiça arrasou a decisão de Orlando Nascimento, deixando claro que a palavra caloteiro não ofende o bom nome e frisando que não caberia à Relação policiar jornais.
Os juízes desembargadores que antes de o serem já o eram
Mas há mais suspeitas que colocam a viciação das distribuições na era Vaz das Neves no centro da operação Lex. Uma delas é sobre a distribuição ao juiz Rui Gonçalves, em 2013, de um processo de José Veiga. Em causa estava um recurso à condenação do empresário a 4 anos e meio de pena suspensa por fraude fiscal – relacionada com a transferência do jogador João Vieira Pinto para o Sporting.
Neste caso, José Veiga – considerado um dos principais corruptores de Rangel – enviou uma cópia do seu recurso à decisão de primeira instância para o funcionário Otávio Ribeiro, que o reenviou para dois juízes: Rui Rangel e Rui Gonçalves. Mas o caso não tinha ainda sido distribuído a ninguém nessa altura. Mais tarde, porém, acabaria por calhar a Rui Gonçalves. O resultado foi a anulação da condenação de primeira instância.
Segundo a TVI, foi ainda apanhada no âmbito da operação Lex uma mensagem de 2014 em que Rangel intercedia por Abel Xavier junto Tomás Correia, então presidente do Montepio, para resolver um problema relativo a um financiamento de uma obra em Cascais.
Recorde-se que já no caso Vistos Gold Vaz das Neves foi apanhado a falar com o arguido António Figueiredo, prometendo-lhe o seu apoio para o que precisasse. Nesse caso, tudo acabou arquivado. Ontem, o juiz jubilado esclareceu que nunca tivera «qualquer benefício material, ou de outra natureza, com a intervenção que [teve], enquanto Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, em atos de distribuição de processos». Disse ainda à Lusa que atuou, não para beneficiar Rangel, mas para «gerir situações que, pela sua natureza e ante a delicadeza do contexto em que ocorreram, exigiram» a sua intervenção.
As reações dos juízes, da Relação e do Governo
Durante o dia de ontem foram várias as reações às mensagens que deixam transparecer interferências de Vaz das Neves. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) pediu uma sindicância à distribuição de processos naquele tribunal e o Conselho Superior da Magistratura fez saber que já está a fazer «averiguações preliminares» sobre o caso e que os primeiros resultados serão analisados no plenário do conselho de 3 de março.
Já a Relação de Lisboa afirmou em comunicado que «a distribuição de processos é realizada através de um programa informático, com aleatoriedade» e que «as decisões proferidas em tais processos são elaboradas com isenção, imparcialidade, e preocupação com a defesa do interesse público e particular».
Também o Ministério da Justiça esclareceu que «as operações de distribuição dos processos judiciais são realizadas por meios eletrónicos que garantem a aleatoriedade», adiantando que «em certos casos, a lei impõe que os processos sejam atribuídos a um juiz concreto». Diz a tutela de Francisca Van Dunem que em determinados casos é possível excluir um juiz da distribuição por doença, incapacidade ou acumulação de trabalho.
Já sobre os casos divulgados envolvendo Vaz das Neves, o Ministério assegura: «Cumpre sinalizar que nenhuma das situações divulgadas foi associada a falhas técnicas ou de conceção do sistema eletrónico de distribuição de processos judiciais». E conclui dizendo que nunca foi detetada até hoje «qualquer irregularidade decorrente das características técnicas do sistema eletrónico de distribuição».