Evita. A inquieta vida de uma mulher morta

A Argentina dos descamisados chorou por ela. Após a sua morte, o corpo esteve dezasseis anos desaparecido até que Juan Domingo Perón, no exílio, resolveu expô-la numa caixa de vidro na sua residência da Puerta de Hierro, em Madrid, rodeada de flores e de gente.

Roberto Germano não era nenhum vivaço, mas também não era propriamente um saloio. Enfim, uma daquelas personagens que a vida moldou à vontade das suas circunstâncias. Gostava de conduzir e fazia uns biscates ao volante para quem o contratava para o efeito. Não estranhou por aí além quando um padre chamado Francisco Rotger, da Ordem de São Paulo, um dos clérigos preferidos do papa Pio XII, o contratou para transportar um cadáver de Milão para Madrid. Afinal, pagavam-lhe bem e ele estava habituado a carregar com muita porcaria de um lado para o outro. Desconfiou, quanto muito, a condição de ter de ser acompanhado por dois fulanos da polícia secreta espanhola que se lhe apresentaram como Cabanillas e Sorona, nem mais nem menos. Pareciam ter vontade de poupar saliva e mal abriam a boca. Roberto encolheu os ombros e esteve-se nas tintas. A papelada registava o nome da defunta: Maria Maggi de Magistris, enterrada no dia 14 de maio de 1957, na sepultura 41 do setor 57, no cemitério Maggiore, bairro de Mussoco, em Milão. A viagem decorreu sem incidentes. Pelas 20h50 minutos de 3 de setembro de 1971, Germano entrava na Puerta de Hierro da capital espanhola, junto à residência do antigo presidente argentino no exílio, Juan Domingo Perón, deposto por um golpe militar em setembro de 1955. Foi imediatamente dispensado dos seus serviços. Nem isso o deixou com a pulga atrás da orelha. Recebeu o pagamento e pôs-se na alheta.

Na casa de Perón tinham-se reunido, nessa noite, o embaixador argentino em Madrid, Joge Rojas Silveyra, o médico Pedro Ara Sarriá, e o abade Elías Gómez, mentor espiritual do general. Juntaram-se-lhes, pouco depois, Blanca e Herminda Duarte, José López Rega, secretário particular de Domingo, Jorge Paladino, um político de carreira muito suspeita, e um grupo de pessoal doméstico. Foi o próprio Juan Domingo Perón a abrir o caixão e cortou-se tão violentamente ao fazê-lo que ficou a sangrar abundantemente de ambas as mãos. A defunta tinha um tom de pele amarelado, marcas profundas na cara e no nariz e as pontas dos dedos dos pés muito degradadas. O Dr. Ara confirmou, depois de uma observação atenta, que se tratava do mesmo féretro que havia embalsamado um ano após a sua morte, a 26 de julho de 1952. Acrescentou, alegremente, que a considerava em excelente estado de conservação: «Parece uma boneca!» Maria de Magistris era, na verdade, María Eva Duarte de Perón. Para os descamisados argentinos, Evita.

Perón benzeu-se e deu ordens para que Blanca e Herminda, suas irmãs, a vestissem de seda branca e a colocassem num esquife de vidro sobre uma mesa do primeiro andar do palacete. As empregadas deveriam rodeá-la de flores frescas todas as manhãs. Havia sempre alguém da casa a seu lado. Até mesmo Isabel Perón, a nova mulher de Juan Domingo. Elías Gómez aconselhou-a a tentar absorver a personalidade da finada. Talvez conseguisse ganhar algo do seu enorme carisma. Há dezasseis anos que ninguém sabia o que tinha sido feito do corpo de Evita. Voltava morta como se estivesse viva. E Perón estava feliz como um noivo acabado de casar.

Eva nasceu no dia 7 de maio de 1919, no seio de uma família pobre de_Los Toldos, e aos 15 anos já batia as casas de milongas de Buenos Aires ansiosa por se tornar uma estrela. Foi atriz de teatro e de cinema, cantora de cabarets, um ícone popular da América Latina e até do mundo, mas sempre prisioneira entre a dedicação cénica aos humildes como ela e a exibição gloriosa da riqueza que o casamento com o então coronel Juan Domingo Perón, em 1944, lhe trouxe, alavancando-a a primeira-dama do país após a eleição do marido à presidência, dois anos mais tarde. A morte bateu-lhe cedo à porta, apenas com 33 anos, pelos caminhos ínvios do cancro, e Perón enrolou-se numa dor insuportável, recusando-se a aceitar a realidade infame da vontade soberana da Senhora da Gadanha. Mandou chamar um médico espanhol, o Dr. Pedro Ara, e exigiu-lhe a missão praticamente impossível de a manter intacta como carcaça incorruptível, uma espécie de santa da atualidade à custa dos milagres da química moderna. Pedro cumpriu a tarefa: ao fim de doze meses, Domingo voltou a abraçar a mulher que amava. Ou uma versão embalsamada dela: pele de cera e veias entupidas de glicerina, uma obra de arte que precisava de cuidados contínuos para que a degradação não desfizesse o trabalho do seu autor. Apesar de morta, Evita vivia. Não apenas para o populista Perón, sofrido viúvo sem consolo, mas também para o povo de um país que fez dela a lendária Líder Espiritual da Nação. Foi velada durante treze dias consecutivos.

 

Chorando por ti…

O Dr. Pedro Ara Sarriá dedicou-se à tarefa de eternizar Eva Perón com o afinco digno de um fanático. O seu diário regista minuciosamente o trabalho feito e, ao mesmo tempo, momentos de satisfação evidente à medida que ia obtendo resultados interessantes: «11 de agosto: Mis temores acerca del estado de la piel de las manos quedan desvanecidos, pues las arrugas producidas por la desecación lenta se encuentran duras como el cartón. Evita sigue luciendo hermosa».

Sabemos como as situações políticas nos países sul-americanos eram voláteis, sobretudo no período do pós-guerra. Generais sucediam-se a generais, ditaduras substituíam ditaduras, geralmente com a contribuição mais ou menos velada dos_Estados Unidos, os principais interessados no caos permanente que possibilitava dominar mão de obra quase gratuita para as empresas lá sedeadas.

A 16 de setembro de 1955, Juan Domingo Perón foi apeado do seu pedestal. Dois generais, como não poderia deixar de ser, Eduardo Lonardi e Pedro Eugenio Aramburu, apoiados pelo almirante Isaac Rojas, depuseram-no da presidência da Argentina. O golpe de Estado ficou conhecido por Revolución Libertadora. A imagem mirífica e romântica do casal Domingo e Evita foi reduzida a destroços: os seus excessos foram tornados públicos e fotografias de objetos requintados, antiguidades de valor incalculável, automóveis de luxo e até iates de recreio invadiram as páginas dos jornais ao mesmo tempo que se questionava o verdadeiro interesse de Eva Duarte pelos pobres que tanto dizia amar.

Perón partiu para o exílio. Primeiro na Venezuela onde, talvez por uma questão de hábito, voltou a casar com uma cantora de nightclubs, María Estela Martinez, de nome profissional Isabel, rapidamente alcunhada de Isabelita e que 19 anos mais tarde se tornaria a 42.º presidente da República Argentina.

«Don’t cry for me Argentina/The truth is I never left you/All through my wild days/My mad existence/I kept my promise/Don’t keep your distance», cantava-se no musical de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice. Mas a verdade é que milhões de argentinos continuavam a chorar pela sua Santa Evita e o general Aramburu, sentado na cadeira do poder, não estava para aturar essas choraminguices que só serviam para enfraquecer a sua popularidade. Deu ordens para que o ominoso biltre que chefiava o Serviço de Inteligência do Exército, Carlos Moori Koenig, resolvesse o assunto com discrição. De um dia para o outro, o cadáver de_Eva María Duarte desapareceu. O problema é que Koenig não era apenas pouco discreto como criara uma neurose por Eva e pouco lhe importava que ela estivesse cadáver. Guardou-a num armário do seu gabinete e não se escusava em utilizá-la como alvo dos seus doentios impulsos sexuais. Aramburu perdeu a paciência. Tomou o caso como algo de pessoal e formalizou a Operación Translado. Negociações secretas tiveram lugar entre um diplomata argentino, Gustavo_Adolfo Ortiz, e um representante da Santa Sé, Giovanni Penco. Chegou-se a um acordo.

O corpo de Evita foi enviado para Itália num elegante caixão de prata e encafuado num mausoléu do cemitério Maggiore, em Milão. Na placa de identificação, afixou-se um nome: Maria Maggi de Magistris. Aramburu sentiu uma espécie de alívio. Afinal era como Evita tivesse deixado a existência de forma irrevogável. Não era mais Evita. Não mais influenciaria os descamisados com os seus tão misteriosos como perigosos encantos. «It won’t be easy, you’ll think it strange/When I try to explain how I feel/That I still need your love after all that I’ve done». Uma canção que o vento levava sem esforço. Apenas palavras, feitas de ar como todas as palavras.

 

O reencontro

Dezasseis anos depois, numa vivenda da Puerta de Hierro, com as traseiras debruçadas sobre o_Real Club, Juan Domingo Perón e Eva María Duarte estavam juntos outra vez. Mais um general, Alejandro Agustín Lanusse, anti-peronista convicto, decidiu que manter Perón no exílio só servia para alimentar o mito e decidiu autorizar o seu regresso à Argentina. Uns meses antes, teve outro gesto com o qual pretendia reforçar a sua popularidade como presidente: ordenou que o cadáver de Evita fosse exumado do seu catre em Mussoco e entregue àquele que fora seu marido.

O Dr. Pedro Ara Sarriá voltou a não ter mãos a medir. Perón exigiu voltar a ver Evita tal e qual como surgia a seu lado nos comícios que enchiam as praças de Buenos Aires de uma populaça encantada por aquela espécie de casal que parecia saído diretamente das telas de Hollywood. Sarriá montou na Puerta de Hierro um laboratório idêntico ao que tivera no 2.º andar do edifício da Confederação Geral do Trabalho naquele dia fatídico de julho de 1952 no qual Evita sucumbiu ao cancro que lhe atacara o útero. Submergiu o cadáver em acetato, repôs as quantidades devidas de glicerina nas artérias, injetou parafina líquida nos globos oculares e sorriu de satisfação profunda: Evita podia estar morta, mas continuava bonita como sempre.

E, já agora, provocava os mesmos choques emocionais em seu redor tal como quando acenava aos seus descamisados do alto da varanda da Quinta de Olivos, vulgarmente conhecida por_La Casa Rosada.

Eis que entra em cena, por entre todo este cenário macabro, uma figura rasputiniana que vivia na sombra de Juan_Domingo Perón: José López Rega, um maçon dedicado ao esoterismo, o homem nomeado pela Polícia Federal como guarda-costas e protetor do Presidente da República. Rega seguiu fielmente o seu chefe para o exílio e Perón não dispensava as suas opiniões e conselhos. Ah! Talvez não por acaso, chamavam-lhe El Brujo.

Por mais rigorosos que queiramos ser na descrição dos momentos históricos que se seguiram ao reencontro entre Domingo e sua Evita, muito do que possamos investigar está envolto num nevoeiro que impede a visibilidade límpida que distingue a lenda da realidade. Sergio Rubín, jornalista e autor de um livro de investigação – Eva Perón, Secreto de Confesión: Cómo y Por Qué la Iglesia Ocultó Su Cuerpo Durante 14 Años – revelou que López Rega obrigava Isabel a deitar-se sobre o corpo de Eva convencendo-a que, através desse contacto íntimo, absorveria o seu lustre indomável.

Uma coisa é, no entanto, certa: a despeito, ou não, de Isabelita, Evita retomou o seu lugar no centro da vida familiar dos Perón. Juan passava horas a seu lado, falando baixo, quase em segredo, pondo-a certamente a par do que tinha perdido durante os anos em que não passara de Maria de Magistris. Isabel procurava identificar-se com a mulher que ocupara centro da vida sentimental e política do seu marido. López Rega limitava-se a ser o burlão de vinte e oito patas que enganava toda a gente com uma falsa aura de religiosidade. Interiorizou que havia de fazer de Isabel a nova Eva e, se pensarmos no sucesso político da primeira, podemos aceitar sem rebuço que andou lá muito perto.

Evita era exibida perante todos, habitantes ou visitantes da casa da Puerta de Hierro. Os seus despojos eram parte da mobília, o esquife envidraçado permitia observar com atenção o seu rictus encerado de boneca, por vezes as refeições eram transferidas para a sala onde a haviam depositado de forma a que se criasse, segundo o tratante Rega, um ambiente propício para que a magia intrínseca de Evita voltasse a abençoar os que a rodeavam.

Em 1973, Juan Domingo regressou à Argentina. Nas eleições presidenciais de 23 de setembro, ele e a sua nova Evita, Isabel Martínez de Perón, voltaram à_Casa Rosada com 60 por cento dos votos. Menos de um ano depois estava morto: 1 de_setembro de 1974. Isabelita assumiu a presidência mas, decididamente, não era Evita. Acabaria destituída por um dos habituais golpes militares.

Tinham decorrido trinta anos sobre aquela cerimónia que servira para angariar fundos para auxiliar as vítimas do medonho terramoto de San Juan e durante a qual María Eva Duarte se apresentara a Juan Domingo dizendo: «Coronel, obrigada por existir!» Talvez a chama da paixão se tivesse apagado entretanto e a morte possa ter contribuído para isso. Perón voltou a Buenos Aires mas deixou o cadáver de Evita em Madrid. Por esquecimento? Por desinteresse? Por saturação? Pois… já cá não está para responder às perguntas que lhe queiramos fazer.

Evita, ou os seus restos, teriam direito a um espetáculo derradeiro, algo que ela apreciaria certamente. A 17 de novembro de 1974, um avião militar aterrou incógnito na Base Aérea de Morón, nos arrabaldes de Buenos Aires. As formidáveis medidas de segurança que se seguiram puseram a cidade em alerta. Grupos de militares vigiavam as esquinas, as pracetas, as ruas e avenidas de metralhadoras nas mãos. O povo foi-se juntando como costumava juntar-se para ver Evita. Um carro funerário rodou devagar por entre aplausos, lágrimas, acenos de gente simples que apenas queria transmitir uma última mensagem de saudade. Muitos recordavam-na como a única voz retumbante que vazia eco no coração do povo. Sem nunca ter fugido às dicotomias. Juan José Sebrelli, um dos sociólogos argentinos, escreveu: «Evita é sustentada como mito tanto pela direita como pela esquerda. Embora os seus discursos estivessem ao lado dos operários, ela defendeu de forma enérgica a repressão às greves realizadas contra o Governo de seu marido. Evita, longe de ter sido uma defensora dos operários, ajudou na domesticação do sindicalismo argentino. Ela era a perseguida e a perseguidora, a mulher do chicote».

Isabelita Martínez de Perón deu a ordem para que o cadáver incorrupto de María Eva Duarte de Perón voasse de Madrid para Buenos Aires. No final do trajeto que trouxe para as ruas os argentinos que lhe dedicaram um amor impossível, ficou finalmente em sossego no mausoléu da família, no cemitério de La Recoleta. O certo, no entanto, é que Evita nunca morreu, quem morreu foi Eva Péron. Talvez merecesse no túmulo a frase fundamental de Camões: «Nunca vi coisa mais para lembrar e menos lembrada do que a morte: sendo menos aborrecida que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude».