Alis Ubbo, ou ‘porto seguro’, foi o nome que os fenícios deram ao lugar protegido das marés mais duras do Atlântico a que hoje chamamos Lisboa. É assim que Paulo Abreu abre o seu documentário Alis Ubbo, em exibição até dia 4 de março no Cinema City em Alvalade. São poucos dias de exibição para um filme a não perder para quem gosta de cinema, de arquitetura ou apenas de pensar sobre o futuro da cidade na era da massificação do turismo.
O documentário, filmado entre 2016 e 2018, apresenta Lisboa pela mão anfitriã de um condutor de tuk-tuk. O nosso condutor tem a sabedoria da resposta pronta, o conhecimento dos pontos de interesse fora do circuito (leia-se ilegais), e a segurança garantida pelo dizer da t-shirt ‘god is my co-pilot’. Leva-nos a todos os ‘musts’ turísticos acompanhado pela ‘rádio tuk-tuk’ em voz de fundo. Juntos, vão introduzindo os monumentos e costumes de Lisboa, empacotando nove séculos de história em mensagens de minutos traduzidas para várias línguas. Entre o chinês, o inglês e o francês, lá nos fazem saber que «saudade é algo que está algures entre a melancolia e o pessimismo».
À primeira vista, o humor fino e a ironia visual subjacente a todo o filme indicam o propósito confinado a uma crítica corrosiva aos efeitos do turismo e da pressão imobiliária sobre Lisboa. As sucessivas imagens dos cruzeiros, colossos a subir e descer o Tejo, carregam a dúvida com que muitos lisboetas já se confrontaram. Se o turismo, o alojamento local, e a especulação imobiliária foram determinantes para a recuperação económica de um país sem recursos que bateu na bancarrota em 2011, quando é que muito é demais?
Os turistas visitam-nos para conhecer a nossa cultura. O que irá acontecer quando a nossa cultura for diluída pela rapidez do crescimento turístico e, pura e simplesmente, deixar de existir? Continuarão a vir quando a cidade histórica for pouco mais do que um aglomerado de hotelaria, restaurantes gentrificados e lojas genéricas banalizadas pela globalização?
Ao longo dos séculos, a cidade já viu passar muitos povos que contribuíram para a riqueza cultural que somos hoje, e, no futuro, irá ver muito mais. No entanto, o tempo de introdução de novas culturas deve de ser um recurso muito bem gerido para não destruir aquilo que foi sendo, a muito custo, construído por todos os lisboetas. O alerta é atual, necessário e real. Retirar muito em pouco tempo pode aliviar a curto prazo, mas também pode destruir o desenvolvimento sustentável de uma indústria de turismo que se quer para o longo prazo.
Ao capturar no ecrã este alerta político e social, o documentário atinge um segundo, e maior, propósito, como só a arte consegue fazer. A qualidade da narrativa visual é, em si, produção cultural, contribuindo para construir aquilo que teme ver destruído. Se Belarmino de Fernando Lopes ficará, para sempre, como testemunho incontornável da Lisboa dos anos 60, Alis Ubbo será a voz da cidade no final da segunda década do novo milénio.
Entre o alerta dos riscos e o sublimar da arte, agarramo-nos à imagem de serventes de obra que trabalham e de gruas que dançam ao som de Amália, dando corpo às palavras de Pedro Homem de Melo: «Povo que lavas no rio/Que talhas com o teu machado/As tábuas do meu caixão/Pode haver quem te defenda/Quem compre o teu chão sagrado/Mas a tua vida não».