em só a partir do coronavírus se escrevem as história das crises. Que o diga a família real espanhola, que nas últimas semanas tem lidado com uma panela de pressão dentro da Zarzuela. E, na tentativa de impedir que expluda, o Rei Filipe VI tomou medidas sem precedentes: no passado domingo, anunciou a renúncia de qualquer herança que poderia vir a receber do seu pai, o Rei emérito Juan Carlos. No mesmo comunicado oficial em que se comprometeu a não receber um tostão vindo dos cofres do ex-monarca, Filipe VI também anunciou que, a partir de agora, o pai também vai deixar de receber a verba anual de 194 mil euros destinada a ajudas de custo de que vinha gozando desde que, em junho de 2014, abdicou do trono a favor do filho.
Em causa estão as irregularidades financeiras apontadas a Juan Carlos, agora com 82 anos, e que entre 1975 e 2014 foi o chefe de Estado espanhol. Durante o seu reinado, Juan Carlos terá criado várias fundações e empresas offshore através da quais terá recebido milhões de euros, nomeadamente da Arábia Saudita. Segundo as notícias que vieram a lume há uma semana, o atual Rei de Espanha seria beneficiário de pelo menos duas dessas fundações, como noticiou o The Telegraph. Filipe VI nega no entanto qualquer envolvimento no caso. «Em relação às notícias que apareceram no dia sobre as entidades denominadas ‘Fundação Zagatka’ e ‘Fundação Lucum’, Sua Majestade o rei desconhece por completo e até hoje sua suposta designação como beneficiário», afirma o comunicado da Casa Real espanhola. Na mesma nota, são evocadas as palavras proferidas pelo monarca espanhol aquando da sua tomada de posse, lembrando que Filipe VI afirmou nesse discurso que cabia à Coroa zelar pela dignidade da instituição, preservar o seu prestígio e observar uma conduta correta, honesta e transparente, como convém à sua função institucional e responsabilidade social. E é, na sequência dessa promessa, que decidiu agora repudiar a sua herança, «cuja origem, características ou finalidade possam não estar em consonância com a legalidade ou com os critérios de retidão e integridade que regem a sua atividade institucional e privada e que devem guiar a atividade da Coroa», afirma no documento.
Desde 2018 que os ‘jogos’ financeiros do antigo monarca têm estado sob os holofotes mediáticos. E tudo começou quando Corinna zu Sayn-Wittgenstein, uma antiga amante de Juan Carlos, foi apanhada pelas escutas do antigo comissário José Manuel Villarejo, um ex-nome forte da Polícia espanhola, a acusar o antigo monarca de vários delitos, entre os quais fraude fiscal e corrupção. As escutas foram parar aos meios de comunicação social, e nelas se ouvia a empresária a explicar como o rei a tinha usado como testa de ferro. «Eles colocaram algumas coisas em nome do seu primo, Álvaro de Orleans de Borbón, que também mora no Mónaco. As contas bancárias na Suíça foram colocadas em seu nome…. Agora estão a tentar fazer com que eu passe essas coisas [bens imobiliários] para Álvaro através de Dante [Canonica, um advogado suíço entretanto condenado por fraude fiscal]. Eles estão-me a fazer guerra porque eu não quero cometer um crime», denunciava Corinna, citada pelo Ok Diário.
A empresária, que se apresenta como princesa, contou ainda que Juan Carlos tinha recebido dinheiro e outros bens para mediar o processo de construção de um TGV que liga Riade a Meca, na Arábia Saudita. O caso começou então a ser investigado pelas autoridades suíças e espanholas e, ainda em 2018, a Audiência Nacional espanhola – o tribunal responsável pelos casos mais sensíveis e assuntos de Estado – ordenou a abertura de um inquérito ao Rei emérito por suspeitas de fraude fiscal. Crê-se agora que, só por ter facilitado o processo de construção da linha de alta velocidade – o projeto acabou por ser adjudicado a doze empresas espanholas – o rei terá recebido 100 milhões de euros. Desse valor, 65 milhões terão sido ‘doados’ a Corinna e ao se filho em 2012 – um valor que a própria garante nas escutas que, mais tarde, foi exigido de volta pelo rei emérito.
Os casos obscuros não ficam por aqui: segundo noticiava o El Español logo no início deste escândalo, Juan Carlos terá ainda acordado com o Governo de Adolfo Suárez, o primeiro depois da ditadura franquista, que uma percentagem de todas as transações petrolíferas de Espanha seria desviada para a conta da família real.
Apesar das denúncias que têm vindo a lume, ainda na semana passada o Parlamento espanhol considerou que uma investigação à atuação do Rei emérito era inconstitucional, pelo que rejeitou os pedidos de criação de uma comissão de inquérito para investigar Juan Carlos. O Rei emérito saiu este ano do Palácio da Zarzuela e mudou-se este ano para Sanxenxo, na Galiza. As revistas cor-de-rosa espanholas apontam a má relação com a nora, a rainha Letícia, como o gatilho da mudança. Tricas que à luz de um eventual julgamento na Justiça nada mais parecem do que uma bela fofoca para redirecionar a opinião pública.
Preservar a exemplaridade da Coroa está a tornar-se numa tarefa cada vez mais inglória para Filipe VI, que vê a sua família a colecionar escândalos gravíssimos – o cunhado Iñaki Urdangarín está preso e foi obrigado a retirar à sua irmã, a infanta Cristina, ré no mesmo caso de corrupção, o título de Duquesa de Palma de Maiorca.