Entre olhares possíveis, saliento estes dois: de apreensão e de esperança.
Um olhar apreensivo, necessariamente. A realidade apresenta-se grave e pesada, como o silêncio que se abateu sobre as ruas. Foi tudo muito de repente, embora tivéssemos razões de cautela e prevenção. Interromperam-se rotinas, riscaram-se agendas, retraíram-se os âmbitos quase só aos domésticos – de quem os tenha, aliás.
Como se o dia escurecesse a meio. Porque não se vê bem como, nem quando, nem até quando. Daqui a apreensão, inevitável. Tanto mais quanto os meios parecem poucos para responder já e a tudo.
Mas o olhar estende-se também sobre o trabalho, a economia, o ano letivo. Sobre o bem-estar de muitos, em especial dos que vivem sós, dos idosos e dos mais dependentes. Se já era difícil responder a tudo, como será possível corresponder a tanto?
De fora, o apoio será o que puder vir, pois terá de ir para muitos outros também. De dentro, as capacidades públicas, sociais e privadas parecem estar nos limites.
Tudo isto somado, deixa-nos necessariamente apreensivos.
Todavia há outro olhar possível e mais justificado. É um olhar de esperança. Não de esperança vazia e inconsciente. Sim de esperança justificada e patente.
O que se passa com os profissionais de saúde, por maior exemplo. Como se têm dedicado a cuidar dos mais tocados pela pandemia, superando em generosidade o que normalmente fariam e nalguns casos já era muito. E a atuação de tantos outros, que nos vários campos procuram responder generosa e criativamente a um desafio tão incomum.
Também o que se vai manifestando, um pouco por todo o lado, de solidariedade espontânea. Nas famílias que se reorganizam no âmbito de cada uma, para acompanhar em casa o que estava distribuído por mais sítios. Nas vizinhanças que se reativam, para ajudar em tarefas mais práticas, ou simplesmente para ver como estão os outros. No tempo reencontrado para contactar, direta ou mediaticamente, para conviver.
Tudo isto nos vai preenchendo um olhar de esperança. Não utópica, antes plena de lugares e de factos. Para os crentes, ressalta a imagem divina que a humanidade afinal não perde. Reaviva-se mais uma vez no sobressalto. Para todos, indicia-se o que havemos de ser, certamente melhor, quando nos reencontrarmos mais à frente.
por D. Manuel Clemente
Cardeal Patriarca de Lisboa