«Nós precisamos de nos movimentar. Vamos ler História, retomemos o discurso histórico, houve tantos momentos de reviravolta e depois voltámos sempre a ser humanos, com as nossas alegrias e as nossas tristezas._Houve sempre momentos de pausa, nós estamos agora num momento de pausa e devemos usar isto para crescer como pessoas». Este é o ponto de partida para o que aí vem: o que estamos a viver hoje não é o fim, é uma pausa. Uma pausa nas nossas vidas, nas nossas relações, na forma como nos damos e recebemos. Uma pausa que, ao contrário de muitas outras na nossa história, interrompeu o toque, mas não a presença (através da internet).
As escolas, públicas e privadas, estão a reorganizar-se para um terceiro período que tudo aponta não poderá ser presencial, as empresas e os trabalhadores estão – e têm mesmo de o fazer – a adaptar-se ao teletrabalho (o que significa conseguir atingir um equilíbrio nas suas vidas sem sair do mesmo sítio) e nas ruas os beijinhos e os abraços são substituídos por ‘olás’ a dois metros de distância.
Margarida Pedroso Lima é psicóloga, na área do bem-estar, e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra e não tem dúvidas de que «pausa», como prefere chamar a este momento de estado de emergência devido à pandemia, poderá abrir mais portas ao teletrabalho em algumas empresas e a rotinas mais distantes em geral: «É um dos perigos, o favorecimento do distanciamento entre as pessoas, com esta possibilidade de se trabalhar à distância. Estava agora mesmo a preparar dez horas de aulas à distância e estou a dar consultas online e sinto que se perdem algumas coisas fundamentais, como o corpo». E, sem o corpo, «a interação passa a ser mais verbal ou escrita, como se cada vez estivéssemos a ficar seres mais mentais e perdêssemos os movimentos e até mesmo o toque».
Não é o pior momento, mas terá consequências
O que este período mudará nas famílias, nas empresas, nas escolas e na sociedade em geral ninguém sabe ao certo, mas para esta especialista, apesar de todos os riscos que esta pandemia trouxe – e há já uma grande quantidade de pessoas a manifestar ansiedade e alguma desorientação – o facto de o Homem ser adaptável faz com que obrigatoriamente vá recriar as situações e se reinventar. «Repare que ainda assim não estamos numa situação tão má, se pensarmos em casos como o de Anne Frank, que esteve vários anos enclausurada e nem barulho podia fazer…», explica a docente, acrescentando que ainda assim haverá consequências desta pausa, por exemplo, para a vida dos casais que hoje têm de partilhar casa 24h. E talvez até para o modelo de família a que estávamos habituados: «É que há casais que já se davam mal nas férias, agora imaginemos tantos dias e sem poder dizer: ‘vou embora ou vou ao café’».
A preocupação neste campo é geral. O psiquiatra e sexólogo Júlio Machado Vaz explicou ao jornal i que toda a tensão que hoje se vive pode inclusivamente potenciar situações de violência doméstica: «A violência doméstica preocupa-me. Há casais que se mantêm porque saem para trabalhar e, como chegam a casa só ao fim do dia, depois de um dia de trabalho, têm apenas encontros fugazes. Mas se temos casais juntos, 24 sobre 24 horas, é normal que haja com frequência momentos de fricção. Até nos casais que têm uma boa relação podem existir esses momentos. Como agora estão sempre juntos e não devem sair de casa, há fissuras que se abrem».
Júlio Machado Vaz esclarece que para este risco contribui o facto de a sociedade portuguesa ser, regra geral, muito individualista. Mas a relação com as crianças também vai mudar depois de tudo isto passar. Também ao jornal i a psicóloga Rita Jonet considerou que, por estes dias, os pais estão a perceber algumas coisas novas: «Há pais que me dizem que agora já sabem o que é lidar com crianças constantemente».
Espaços repensados para responder a um mundo novo?
Mas se no trabalho e na família vai haver mudanças, na conceção do espaço público e privado também poderão surgir movimentos que o tentem repensar, havendo já arquitetos preocupados em estudar como será o espaço da escola num futuro próximo. O que seria válido apenas num cenário em que as coisas não voltassem ao normal. Mas Margarida Pedroso Lima não vê tal cenário como provável: «Se [esta situação] não durar apenas dois ou três meses teremos de reconstruir as sociedades de outra maneira, claro», diz, referindo que ainda é prematuro pensar nisso.
E durante o tempo em que durar a pandemia é importante continuar a vida dentro da maior normalidade possível, vendo as plataformas de ensino à distância como o Zoom boas ferramentas, «melhores do que, por exemplo, a telescola».
No geral, a psicóloga considera que se vai aprender com esta crise – que «tem coisas benéficas como as questões ecológicas e o perceber o que realmente é importante» – e dela vamos sair acrescentados. «Se vamos voltar a viajar? Claro que sim, até vamos viajar mais, mas talvez também com maior consciência».
A paranoia, a ansiedade e o preconceito sairão reforçados
No entanto, mesmo com o regresso da normalidade, haverá franjas de pessoas que sairão com medos reforçados. «A paranoia vai sair reforçada, a ansiedade vai sair reforçada, o preconceito vai sair reforçado, o medo da aproximação vai sair reforçado», explica.
Apesar de estarmos a falar de seres que se adaptam não se concebe que seja possível no futuro viver uma vida confinada a uma casa. «Pessoas que ficarem muito tempo limitadas nos seus movimentos vão ficar limitadas no pensamento e até contrair doenças. Devemos ficar confinados a casa, mas não ao movimento. O próprio Estado falou da importância de as pessoas darem uma voltinha», diz Margarida Pedroso Lima, concluindo que, a «longo prazo, ficar trancado aumentaria a depressão, baixaria o sistema imunológico e, obviamente, aumentaria todas as doenças cardiovasculares».
A visão de D. Manuel Clemente e de Anselmo Borges. Clique na imagem para ler na íntegra
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