O dentista de Jerusalém

Os adeptos do apocalipse só querem saber da próxima explosão do número de contagiados.

A estória é contada de várias maneiras, mas o sentido é o mesmo. Na versão que me chegou, no auge de uma crise israelo-árabe, Yasser Arafat anunciou um bombardeamento devastador, que provocaria a morte de dois milhões de judeus… e de um dentista em Jerusalém. Imediatamente os jornais noticiaram que a Mossad já estava em campo para descobrir quem era o dentista, levando o líder da OLP a comentar para o seu estado-maior: «OK! Podemos avançar… nenhum problema com os dois milhões».

No meio do alarido que tem acompanhado o alastramento do covid-19, as preocupações que mais abalaram a Pátria foram casos fortuitos, como o da senhora que ficou fechada numa casa de banho. Aí sim, os sinos tocaram a rebate e o povo saiu à rua, empunhando forquilhas e varapaus, como na revolta da Maria da Fonte.

A desorientação foi transversal a territórios, classes sociais, escalões etários e cores partidárias, não poupando sequer conceituados profissionais da informação, que elegeram a ministra e a diretora-geral da saúde como alvos preferenciais para críticas e brincadeiras de mau gosto. Estou agora à espera de ver quem será o primeiro a pedir desculpa à Dra. Graça Freitas.

Sucedem-se conferências de imprensa, geralmente subvertidas pelo metralhar de perguntas tontas, centradas na boataria. Como cidadão, passo bem sem elas, da mesma forma que dispenso as visitas dos governantes aos locais dos acontecimentos, bastando-me saber que ministros, secretários de Estado e diretores-gerais estão nos seus postos a conduzir as operações, e que a informação relevante está disponível nos sites oficiais.

Vozes respeitadas têm vindo a público, com o louvável propósito de informar e aconselhar, mas o vulgo prefere o lixo das redes sociais. Os milhares que são atendidos na Linha Saúde 24, nos centros de saúde, nas urgências e nos internamentos não contam, o esforço de médicos e enfermeiros também não, o que importa é a exibição de falhas pontuais, como se elas fossem a norma num sistema de atendimento que vai de Melgaço a Vila do Corvo.

Respostas hospitalares competentes têm permitido monitorar tanto os casos de mera referenciação como os de infeção confirmada, mas os adeptos do apocalipse só querem saber da próxima explosão do número de contagiados, o que, sendo matematicamente certo, não deveria ser razão para o encerramento do país. Se a motivação dos ‘fica em casa’ fosse a defesa do bem comum, vá que não vá; mas tudo sugere que o zelo estará mais no apego ao sofá.

Nas calamidades, a precipitação tende a ser a pior das companhias, sobretudo quando os dirigentes são induzidos a correr atrás do acessório e a dar prioridade a quem se manifesta com mais ruído, em detrimento de uma análise responsável da gravidade das situações.

Infelizmente, as pessoas que se preocupam mais com a árvore, e menos com a floresta, continuam a poluir o ambiente. Como na estória de Arafat, perante a ameaça de morte para milhões, o que mais os preocupa… é o dentista.