A corrida contra a propagação do novo coronavírus na Índia levou a que o Governo ordenasse a maior quarentena do mundo esta semana. São mais de 1,3 mil milhões de pessoas forçadas a ficar em casa para evitar uma catástrofe de proporções gigantescas que o sistema de saúde indiano seguramente não aguentaria. E como sobrevivem os milhões de trabalhadores que dependem dos seus rendimentos diários?
Caso 10% da população indiana se desloque aos hospitais com a epidemia isso significa que os trabalhadores de saúde vão ter que assistir qualquer coisa como 130 milhões de pacientes. E isto são apenas as estimativas conservadoras. «Precisamos de construir hospitais improvisados rapidamente. Se a transmissão comunitária se agravar, vamos ter que estar preparados para isso – vai ser um cenário como nunca vimos antes ou para o qual tenhamos treinado», alertou em declarações à BBC Priya Srivastava, médica de um hospital no Norte da cidade Licknow, a capital do estado do Uttar Pradesh.
Não ajuda a epidemia ter penetrado no país em plena época de gripe. «Há muito pânico. As pessoas estão a chegar aos hospitais com tosses e constipações menores, pensando estar infetadas com covid-19. Por isso, precisamos de continuar a martelar na mensagem correta sobre como identificar os sintomas do coronavírus», disse Srivastava.
Nesta cidade, o pânico instalou-se também nas poucas lojas de produtos médicos ainda abertas. E um pouco por toda a Índia, depois de o primeiro-ministro anunciar que o país ia entrar em quarentena, e com a polícia a controlar agressivamente as ruas, os indianos correram para se abastecerem. «A polícia não está a permitir o movimento na cidade. É preciso criar stock porque ninguém sabe o que vai acontecer amanhã», disse ao Times of India Allen Martin, professor. Outros queixam-se dos preços inflacionados, com os vegetais a custarem o dobro.
O país tem apenas 0,5 camas por cada mil pessoas, segundo a OCDE. A título de comparação, Espanha, onde até hotéis são transformados em unidades hospitalares, tem 3 camas por cada mil pessoas, diz a mesma organização. O país vizinho ultrapassou o número de mortes por covid-19 da China continental esta semana e tem apenas uma população de cerca de 47 milhões de pessoas.
Além deste problema, e de haver um número enorme de populações em bairros de lata sobrelotados e em zonas remotas sem acesso a cuidados de saúde, alguns estudos na China indicam que a covid-19 é particularmente mortal em pessoas que sofrem de hipertensão e para quem tem diabetes. No caso da Índia, isso poderá ser um fator que desencadeie uma onda de fatalidades sem fim, pois um terço da população é hipertensa, diz um estudo da revista Human Hypertension. E mais de um décimo sofre de diabetes, informa um inquérito da National Diabetes and Diabetic Retinopathy. Sem falar dos milhões de crianças subnutridas no país que podem ser infetadas com o vírus.
Ciente desta debilidade no seu país, o primeiro-ministro, Narendra Modi, dirigiu-se aos 1,3 mil milhões de indianos e pediu-lhes estoicamente para cumprirem o confinamento com «paciência» e «disciplina». Em mente, Modi poderá ter o facto de que há mais de 100 anos a Índia perdeu cerca de 6% da sua população para a gripe espanhola, a última grande epidemia a arrasar o mundo.
A fome também mata
Milhões de indianos arriscam passar fome durante a quarentena, pois ficam três semanas sem qualquer tipo de rendimento. Pelo menos 90% da força de trabalho na Índia está empregada no setor informal, de acordo com a Organização Mundial de Trabalho, trabalhando nas limpezas, como coletores de lixo, na assistência ao domicílio ou como vendedores de rua e seguranças.
A maior parte destes trabalhadores não tem acesso a pensões, não podem meter baixa e não têm direito a licenças remuneradas – muito menos a férias pagas –, estando desprovidos de qualquer tipo de segurança laboral. Muitos outros nem têm contas bancárias, dependendo de dinheiro físico para fazer face às suas necessidades diárias, o que dificulta o acesso aos fundos que lhes foram prometidos pelos governadores estaduais ou pelo Executivo para mitigar a tremenda recessão provocada pela paragem quase total da economia global trazida pela pandemia.
«Ganho 600 rupias [cerca de 7 euros] todos os dias e tenho cinco pessoas para alimentar. Vamos ficar sem comida em poucos dias. Conheço o risco do coronavírus, mas não posso ver as minhas crianças com fome», disse à BBC Ramesh Kumar, trabalhador que arriscou sair à rua para procurar trabalho.
A Índia tem milhões de trabalhadores migrantes internos, algo que não ajudou a atenuar o risco de transmissão comunitária – além de também existir no país um grande número de pessoas sem residência estável, migrando pela Índia inteira à procura de rendimentos.
Momentos antes de Modi impor o confinamento de três semanas, centenas de milhares de indianos encheram os comboios para saírem de cidades como Nova Deli e voltarem para as suas aldeias natais, por exemplo, no estado do Uttar Pradesh, diz a BBC.
Alguns estados já anunciaram medidas para que os trabalhadores informais e autónomos recebam alguns rendimentos durante a crise da covid-19, embora algumas aparentem ser insuficientes para encher a barriga de cinco crianças. O estado de Kerala vai ativar o esquema de desemprego e transferir 2 mil rupias (24 euros) aos trabalhadores nesta situação, enquanto Karnatka vai pagar dois meses de salários em avanço de uma só vez.
Esta sexta-feira a Índia tinha registado mais de 800 casos e 20 mortes, segundo a Universidade Johns Hopkins. Quando foi anunciado o confinamento, na terça-feira, tinha cerca de 500 casos e 13 mortes. Mas os números podem ser enganadores pela limitada quantidade de testes realizados. Segundo estimativas citadas por um cientista indiano numa coluna de opinião do New York Times, as infeções no país podem, na verdade, estar na ordem das 21 mil.