Albert Uderzo. Hoje não há festa na aldeia

Acabou a aventura de Uderzo, o homem que gostava de desenhar narizes grandes e inventou uma aldeia irredutível cheia de personagens com pencas enormes. Nasceu com seis dedos em cada mão, mas isso não lhe retirou o equilíbrio do traço. O céu caiu sobre o pai de Astérix, o gaulês. Por Toutatis!

Albert Uderzo. Hoje não há festa na aldeia

A de Astérix. Uderzo dizia que foi uma mania de Goscinny: «Desde que o nome do herói comece por um A vai sempre ficar nos primeiros lugares das prateleiras. Eles ligam à ordem alfabética». Alberto encolheu os ombros. Era filho de italianos, aguentava bem demais qualquer tipo de berbicacho, a começar com o do seu próprio nome que deveria ter sido Albert, à francesa, mas como o seu pai não conseguia pronunciar Al-bert, tratou de dizer ao tabelião Al-ber-to.

Alberto ficou. O desenhador de Astérix. E não só. Também deu vida ao pele-vermelha Humpá-pá que era um matulão muito razoável se o compararmos com o pequenino guerreiro gaulês.

No verão de 1959, havia saído para as bancas uma nova revista dedicada a crianças e a adolescentes: Pilote. Alberto Uderzo e René Goscinny tinham-se conhecido oito anos antes e tornaram-se amigos do peito de um dia para o outro. Num instante, uma explosão imaginativa começou a parir personagens, na sua maior parte abandonadas pelo caminho, tal como sucedeu com Jehan_Pistolet e Luc Junior. Mas nessa manhã agradável, sentados na varanda de Alberto, estavam embaraçados. Tinham recebido indicações muito claras sobre a tarefa que lhes fora colocada nas mãos por François Clauteaux, o diretor da revista: «Quero um herói francês!»

François sentia que só distanciando-se do belga Tintin e dos super-heróis americanos, a Pilote poderia sobreviver e traçar o seu próprio destino.

«Fartámo-nos de dar voltas ao bestunto», contou Uderzo na sua biografia, Alberto Uderzo se Raconte. «Estudámos os vários períodos da História da França e, de repente, Eureka!, acertámos os dois ao mesmo tempo: gauleses! Fiquei tão febril que comecei logo a desenhar guerreiros, gente enorme, plena de força, como imaginamos serem os soldados dessa altura, erguendo espadas gigantescas. Olhei para René e vi-o torcer o nariz. Queria um anti-herói. Um tipo baixote, não propriamente bonito».

 

O nariz!

Uderzo resolveu seguir as instruções do amigo. Pegou numa folha em branco e esboçou uma figurinha de bigodes e com um nariz enorme. «Ah! Adoro grandes narizes! Fazem-me sempre rir!»

Uderzo e Goscinny não perderam tempo e debruçaram-se sobre as pranchetas. Matutaram no nome. Não puderam fugir à maior figura da história da antiga Gália, Vercingetorix. «E se todos os personagens gauleses tivessem nomes acabados em ix?», questionou René. «E se todos os personagens latinos tivessem nomes acabados em us?», respondeu Alberto.

Não havia forma de os cérebros de ambos pararem por segundos que fossem. «Não consegui abandonar a minha ideia inicial de um guerreiro grande e forte», afirmou Uderzo nas suas memórias. «Sou um fulano teimoso, mas teimoso. Então desenhei o Obélix».

Astérix e Obélix não foram isentos de críticas. E violentas. Havia quem considerasse o humor de Goscinny demasiado intelectual, outros deploravam o estilo grotesco dos desenhos de Uderzo. Já quanto ao público, esteve-se nas tintas para a crítica e comprava livros como pãezinhos quentes.

Quando René Goscinny morreu em 1977, Uderzo, seu irmão de armas, fez um dos mais tocantes desenhos da carreira: todos os personagens que haviam criado juntos choravam à beira do túmulo do seu pai. René. Mas Astérix não morreu! Uderzo continuou a desenhá-lo sozinho e a tratar, igualmente, dos enredos que, é preciso dizê-lo, perderam muita da sua frescura humorística e surpreendente. Casado com Ada Milani, em 1953, Alberto teve uma filha, Sylvie, que viria a trabalhar nas edições Albert René, a instituição que controlava tudo o que dizia respeito aos direitos de autor dos dois velhos amigos, com funções diretivas repartidas com o marido, Bernard de Choisy. Mas, em 2007, o mau feitio de Uderzo veio ao de cima com a mostarda que costumava subir às narinas do chefe Abraracourcix. Despediu filha e genro e vendeu todos as suas ações da Albert René à Hachette Livre. A guerra que se armou no seio da família foi mais feia do que a entre Ordalfabétix, o peixeiro que nunca cheira lá muito bem, e Automátix, o ferreiro que tem de aturar o fedor do pescado podre. Sylvie acusou o pai de ter aberto a porta da aldeia dos irredutíveis gauleses aos invasores romanos. Uderzo repetiu-se em entrevistas. «Astérix não voltará a ser publicado após a minha morte!» Uma precipitação que o fez engolir em seco quando entendeu que o contrato que assinara com a Hachette dispensava tranquilamente o bater do seu coração e a forma como os seus pulmões iam ingerindo oxigénio e expelindo dióxido de carbono.

Alberto Uderzo deixou de desenhar em 2011: «Olhem para as minhas mãos. Acham que são mesmo capazes de produzir qualquer coisa de novo?» Os editores da Hachette não se preocuparam grandemente com o respeito devido à memória de René Goscinny e de Alberto Uderzo. Com 60% da Editions Albert René, esmagam os 40% que estão na posse do Sylvie que pretendia por um ponto final nas aventura do pequenino guerreiro gaulês. Jean-Yves Ferri, encarregado dos textos, e Didier Conrad , à conta com os desenhos, são nos tempos que correm os Goscinny e Uderzo da modernidade e a editora promete manter o ritmo de produção de um livro das aventuras da aldeia dos irredutíveis por ano, de preferência por altura do natal.

 

A traição do coração

Esta semana, no dia 24 de março, Alberto Uderzo morreu vítima de um ataque cardíaco. Estava na sua casa de Neully-sur-Seine. Tal como acontecera com o seu grande companheiro de vida, René Goscinny, foi traído pelo coração. «Éramos profundamente unidos», conta Alberto na sua autobiografia.
«E éramos tão unidos na amizade como no trabalho. Às vezes estava a desenhar pela madrugada e ligava-lhe para pedir uma opinião. Por vezes era o contrário. Ele era profundamente perfeccionista e ligava muito às expressões que eu colocava na cara das personagens perante as frases que ele imaginava. Tínhamos um sentido de humor muito similar».

Há fenómenos que não se explicam: Alberto Aleandro Uderzo veio ao mundo às 7h00 da manhã do dia 25 de abril de 1927. Estranhamente nasceu com seis dedos em cada mão. À medida que foi crescendo, a deficiência provocou-lhe ataques de fúria e tentava arrancá-los ou cortá-los com qualquer objeto afiado que apanhasse a jeito. Finalmente, os pais decidiram operá-lo. Se o suave milagre dessa anomalia produziu o equilíbrio do seu traço inconfundível, só algum deus menor poderá esclarecê-lo. Talvez Toutatis, quem sabe?

Uma coisa parece ser certa: depois do desaparecimento de Alberto Uderzo, o irmão-gémeo que restava da morte de Goscinny, nunca como neste momento o céu esteve tão pronto para cair sobre a cabeça dessa pequena aldeia da Armórica que resiste ainda e sempre ao invasor. O problema é quando o invasor surge cobardemente, em silêncio, e nos arrasa o coração.

Não, esta noite não vai ser necessário amarrar o bardo Assurancetourix no alto de uma árvore com um pano em redor da boca. Não há perigo de ele resolver cantar com a sua voz arrasadora. Não, hoje não irá haver festa na aldeia mesmo que tenhamos chegado ao fim de mais uma aventura.