Covid-19. Um mundo em guerra

Trump muda de postura e Bolsonaro contradiz as autoridades de saúde. Na Europa, falta equipamento na linha da frente.

Por todo o mundo, o tom é de guerra ao novo coronavírus. Nos Estados Unidos, após uma fraca reação inicial, Donald Trump adapta-se ao papel de Presidente em tempos de guerra, enquanto no Brasil as ações do Presidente Jair Bolsonaro, que constantemente minimizou a crise, chocam até aliados. Itália ainda não chegou ao pico da pandemia, os casos continuam a aumentar, à semelhança do que acontece em Espanha, França e Alemanha, que chegaram ao topo dos países afetados.

Como em todas as guerras, as primeiras vítimas são quem está na linha da frente. Por toda a Europa, por agora o epicentro da pandemia, regista-se uma corrida a material médico, de testes a proteções para os profissionais de saúde. Sobretudo em Itália e Espanha, os países com mais mortes devido ao covid-19 – nos últimos dias ambos ultrapassaram a populosa China.

 Em Espanha, onde no início da semana os profissionais de saúde representavam uns 12% dos casos de infetados, associações do setor, representando 721 mil profissionais, responderam processando o Governo de Pedro Sánchez, exigindo equipamento de proteção contra a covid-19. Os médicos e enfermeiros foram gabados como «heróis, geralmente mais calados, na sombra», pelo diretor do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências Sanitárias, Fernando Simón. Mas as associações que os representam não querem elogios: querem batas impermeáveis, máscaras, óculos de proteção e contentores de resíduos, de maneira a que médicos e enfermeiros não sejam infetados, arriscando infetar por sua vez colegas e pacientes.

A justiça reagiu esta quarta-feira, impondo à comunidade de Madrid, epicentro do surto espanhol, 24 horas para entregar os materiais. O mesmo não sucedeu com o Ministério da Saúde, tendo sido considerado que já fizera o máximo possível – Madrid já avisou que vai recorrer da decisão.

Nesse mesmo dia, o primeiro-ministro espanhol assinou um contrato de 432 milhões de euros para comprar material médico à China. A remessa incluí 550 milhões de máscaras cirúrgicas, 11 milhões de luvas, 5,5 milhões de testes rápidos à covid-19 e 950 ventiladores hospitalares, essenciais para tratar os casos mais graves – mas os materiais demorarão meses a chegar na totalidade.

A questão que se coloca, como na vasta maioria da Europa, é por que não havia reservas destes materiais para uma situação de emergência. Como já acontecia em Itália, médicos espanhóis começam a ter de escolher quem usa os ventiladores. Ou seja, quem vive e quem morre.

«Pois, é clínica de guerra, decidir rápido quem podes tratar e quem não. Soa duro? Sim, e ninguém imagina quanto é», disse ao El País uma médica de cuidados intensivos de um hospital em Madrid. Entretanto, a partir das suas janelas, todos os dias, muitos espanhóis confinados em casa continuam a bater palmas, às oito horas, em homenagem aos profissionais de saúde.

 

‘Não chegámos ao pico’

Na Lombardia, mesmo após duas semanas sob estritas regras de quarentena, o número de casos continua a aumentar. Em Bergamo, no Hospital Papa João XXIII, onde uns quinhentos profissionais de saúde estão infetados, Luca Lorini deu por si a tratar de colegas e amigos. Surpreende-se por não ter sido infetado e questiona-se se terá apanhado a doença no início, sem sintomas, e ganho imunidade – pelo menos 33 médicos já morreram em Itália. «Sabemo-lo antes de ir para a batalha, e aceitamo-lo», assegurou o médico à Associated Press.

Por agora, a situação só deverá piorar. «Não chegámos ao pico», admitiu esta sexta-feira Silvio Brusaferro, diretor do Instituto Superior de Saúde italiano, após serem registados mais de 6,150 novos casos e 712 mortos em 24 horas. No início da semana falou-se numa desaceleração do surto, algo que se mostrou infundado. «Quando a descida começar, o quão abrupta será depende do nosso comportamento», avisou Brusaferro.

Agora, teme-se o alastrar do drama para o centro e sul de Itália, onde cada vez surgem mais casos, após o falhanço do cordão sanitário montado à volta do norte, a região mais afetada. «Há a possibilidade real de a tragédia da Lombardia se tornar na tragédia do sul», disse Vincenzo De Luca, governador da Campânia, onde fica Nápoles.

 

Catástrofe a caminho

Entretanto, a pandemia cresce noutros países europeus: a Alemanha está logo atrás de Espanha, em termos de casos registados, mas França aproxima-se rapidamente. «A situação vai ser muito difícil nos próximos dias», disse esta sexta-feira o primeiro-ministro francês, Édouard Philippe, após uma reunião de ministros por teleconferência. O aviso surge no dia em que a Federação dos Hospitais Franceses alertou que os hospitais em Paris e arredores chegarão ao ponto de saturação dentro de 48 horas.

«Se deixamos os hospitais aguentarem-se sozinhos, cada território varrido pela epidemia a solo, então caminhamos para uma catástrofe», explicou à BFM TV o líder da federação, Frédéric Valletoux, que apelou à transferência de pacientes dos locais mais afetados – algo que já começou a ser feito, por TGV.

 

O vírus não é chinês

De início Donald Trump desvalorizou o perigo para a saúde pública representado pelo novo coronavírus, recusando-se durante algum tempo a tomar medidas para conter a epidemia. Mas à medida que o vírus foi penetrando o país, abriu-se uma janela de oportunidade para o chefe da Casa Branca e a sua postura mudou. Em ano de eleições, Trump usa palavras musculadas para mostrar serviço, lança uma blitzkrieg contra a imprensa e projeta-se como um Presidente em «tempo de guerra». Mobiliza a tremenda força do Governo federal para aliviar os efeitos económicos desencadeados pela pandemia (foi aprovado no Senado o maior plano de resgate da História do país), atira boas doses de nacionalismo, aproveitando a crise para afinar o argumento de encerramento de fronteiras (até quer militarizar a fronteira com o Canadá) e apelida a covid-19 como o «vírus chinês».

Imprevisível como sempre, Trump voltou a dar uma reviravolta em relação à sua postura face à China poucos dias depois de ter dado nacionalidade chinesa ao vírus. «A China tem passado por muito e desenvolveu um entendimento forte sobre o vírus», escreveu no Twitter. Os sinais continuam, mesmo assim, contraditórios. Um dia antes, o secretário de Estado, Mike Pompeo, disse aos repórteres que o «Partido Comunista Chinês representa uma ameaça» à saúde pública norte-americana e ao seu «modo de vida, como demonstrou claramente o surto em Wuhan».

E os norte-americanos gostam. As sondagens da Gallup publicadas esta semana indicam que 60% dos norte-americanos aplaudem a resposta de Trump à epidemia. O vírus foi o suficiente para, de acordo com o mesmo inquérito, o Presidente receber a maior taxa de aprovação desde que chegou à Casa Branca. Entretanto, os EUA ultrapassaram a China continental em número de infeções: esta sexta-feira, o país tinha mais de 86 mil casos confirmados, segundo a Universidade Johns Hopkins.

No sul do continente, Jair Bolsonaro é mais previsível na sua negação da ciência e dos factos. Na quinta-feira decretou as atividades religiosas como serviços essenciais, quando se pensa que na Coreia do Sul uma seita religiosa foi responsável por um exponencial número de casos no país. Os brasileiros protestam às janelas de suas casas contra o Presidente e as medidas por si decretadas, como as desta quinta-feira, surpreendem até os seus mais ferozes defensores.

Num discurso à nação na terça-feira, o ocupante do Planalto condenou as medidas tomadas por vários governadores estaduais para conter a epidemia e instou os brasileiros a voltarem para o trabalho, contradizendo as instruções do seu próprio ministro da Saúde. «É assustador. Você não pode governar um país assim», disse ao Guardian Ronaldo Caiado, médico, governador de Goiás e antigo apoiante de Bolsonaro.

O Irão enfrenta um cenário negro. Com mais de 2 mil mortes registadas, Teerão não tem a capacidade financeira para forçar uma quarentena para conter a epidemia, segundo académicos, que também apontam para um número assustador de vítimas do vírus.

«O número de mortes provocado por oito anos de guerra entre o Irão e o Iraque», que vitimou cerca de um milhão de pessoas, pode ser ofuscado pelas fatalidades desta epidemia: os investigadores Narges Bajoghli e Mahsa Rouhi disseram ao New York Times que o surto de covid-19 «pode resultar em 3,5 milhões de mortes». E as sanções norte-americanas impostas ao país acentuam a resposta ineficiente do Governo para conter a epidemia. «Os iranianos são apanhados novamente entre a má gestão do seu Governo e o estrangulamento financeiro das sanções americanas».