Tínhamos consciência de que estávamos a descobrir algo muito significativo». A confidência é do paleoantropólogo João Zilhão, que sabe que fala de uma descoberta que é exceção, mas que não deixa de lhe dar por estes dias motivos para sorrir. «Às vezes acontece, quando fazemos descobertas que vão contra as ideias dominantes. Mas não é fácil fazê-las passar porque quem pensa de uma maneira diferente não está convencido. Não vou dizer que usem a censura, mas tentam evitar que as ideias passem. Isto acontece no mundo da ciência, como em qualquer atividade humana». Mas, afinal, que investigação foi esta que faz João Zilhão considerar que os resultados podem não ser bem recebidos na comunidade científica?
Publicada esta semana na Science, uma das revistas académicas mais prestigiadas do mundo, a investigação coordenada pelo paleoantropólogo vai contra uma tese que impera desde o século XIX sobre o modo de subsistência dos Neandertais. As descobertas da equipa de investigação liderada por Zilhao, que escavou a Gruta da Figueira Brava, situada no Portinho da Arrábida, entre 2010 e 2013, mostram que a familiaridade dos humanos com o mar e os seus recursos é muito mais antiga do que até agora se pensava, e que a imagem dos Neandertais como gentes do frio, especializados na caça de mamutes, rinocerontes, bisontes e renas, é uma distorção criada pela história da investigação, notam os investigadores. Desde 2013 que a equipa se dedicou a estudar os vestígios descobertos durante a escavação arqueológica, e são essas conclusões que, agora, foram publicadas na Science. E a análise de amostras de ossos humanos, provenientes das centenas de enterramentos mesolíticos existentes na região, revelou um surpreendente resultado.
«Demonstrámos que no período de tempo em que esta zona foi ocupada, um período de 5 mil anos, cerca de 106 mil anos antes do presente, a economia dos seus habitantes dependia dos recursos do mar e da costa e que, basicamente, praticavam uma economia semelhante àquela que encontramos documentada nos povos mesolíticos», explicou o investigador ao SOL. «Através do estudo isotópico [técnica para rastrear a passagem de uma amostra de substância] dos muitos esqueletos que tinham sido enterrados lá, sabemos que a quantidade de recursos e de vestígios que encontramos na Figueira Brava pode equivaler, por comparação, a uma dieta alimentar com uma componente marinha importante, que chega a ser de 50%».
Mas o que significam estes resultados e por que são tão importantes? «Em primeiro lugar, porque estamos a falar de populações Neandertais de há cem mil anos, na Europa, onde uma economia baseada nos recursos marinhos, em proporção não significativa, e que era desconhecida até ao presente», revelou João Zilhão.
Esta aparente ausência vinha sendo utilizada para criar uma narrativa que, agora, este estudo vem ajudar a desmistificar. «Construiu-se uma teoria, uma narrativa, que dizia que esta exploração dos recursos marinhos, documentada nas jazidas sul-africanas, mas desconhecida na Europa entre os Neandertais, era provavelmente aquilo que explicava por que na África do Sul as populações com uma anatomia dita ‘moderna’, mais parecida com a atual, tenham desenvolvido uma inteligência superior à dos seus contemporâneos».
O ‘truque’? Marisco
A razão para este desenvolvimento cognitivo? Segundo o paleoantropólogo a resposta está no consumo de marisco. «Estes recursos marinhos são ricos em ácidos gordos, nomeadamente Onega 3, que favorecem o desenvolvimento dos tecidos cerebrais, portanto, à pala do consumo destes recursos, desenvolveram cérebros mais capazes, tornaram-se mais inteligentes e desenvolveram uma tecnologia mais sofisticada que lhes permitiu ser mais eficiente na extração de recursos. Estes fatores levaram a um crescimento demográfico, que por sua vez levou à criação de sociedades mais complexas e organizadas que se expandiram até chegarem às regiões da Europa e da Ásia habitadas por Neandertais», resume.
Supostamente, acreditava-se que foi a superioridade cognitiva atingida pelo povo proveniente da África do Sul – considerado mais avançado e próximo do «homem moderno» pelo consumo de alimentos provenientes do mar – que terá levado os Neandertais à extinção. Contudo, «este estudo mostra que [essa tese] tem pés de barro». «Ao demonstrar-se que não há diferença no consumo de recursos aquáticos entre as populações Neandertais da Europa e as populações coesas e ditas modernas de África, esta revelação põe em causa a imagem popular e que muitas vezes os documentários científicos também propagam, do Neandertal como uma população do frio e do gelo, caçadores de mamutes, que habitavam as tundras», sintetiza o investigador.
«Isto pode ser uma imagem válida até certo ponto, para regiões do norte, como a Bélgica ou a Alemanha, mas no fundo é a mesma coisa que pegarmos nas populações humanas atuais e usarmos os esquimós como representativos», explica. «É evidente que não tem qualquer espécie de sentido. A grande maioria dos Neandertais viviam no sul da Europa, sobretudo na Península Ibérica e, se precisarmos de arranjar um protótipo para o seu modo de vida, este que existia na Figueira Brava revela que é muito mais próximo daquilo que seriam a maior parte dos Neandertais do que essa imagem do caçador de mamutes que se arrastava na neve para caçar».
Destruir os preconceitos
Os resultados deste estudo revelam, portanto, que estivemos a olhar e a imaginar o povo Neandertal de forma errada durante centenas de anos e o investigador espera conseguir mudar esse preconceito. No entanto, como o próprio diz, «os preconceitos são muito resistentes aos factos».
«Os factos costumam ser teimosos, portanto vamos fazer o nosso caminho e as pessoas vão ter que aceitar que há que mudar do ponto de vista. Os Neandertais, no fundo, também são Homo Sapiens, são nossos antepassados», rematou. Por isso, Zilhão espera que esta investigação, que «resulta de trabalhos e descobertas dos últimos 20 anos», possa agora ser «mais um prego no caixão destas narrativas que tanto tem eliminado e a apresentação daquilo que é a evolução humana recente».
A teoria de que os Neandertais eram um povo menos desenvolvido e primitivo resulta efetivamente de uma ideia criada no século XIX e que persiste até hoje. «No século XIX compreende-se, porque a Antropologia era racista e as pessoas entendiam que havia uma correlação entre a aparência física e a inteligência», define João Zilhão. «Os europeus, sobretudo os ingleses, eram os mais avançados e inteligentes e as outras raças estavam em posição inferior, e na base estavam os negros, sobretudo os povos que viviam da caça e da recoleção, como os das ilhas Andaman», continuou.
«Quando apareceu o primeiro fóssil de um Neandertal, ao observar a caixa craniana, viram que era diferente em alguns aspetos das populações atuais, e assumiram que tinha que ser diferente também nas capacidades cognitivas». Uma falácia que urge desconstruir. «Este conceito é o que está na base de tudo isto, porque quando olhamos para as provas empíricas, não notamos quase diferença nenhuma. Isto só se mantém pela força dessa imagem criada no início dos estudos sobre a evolução humana e, em última análise, como todos os preconceitos, custam a desaparecer».