O alerta de que os lares são uma bomba-relógio, tem vindo a ser dado desde a última semana por várias associações e pelas próprias instituições que prestam cuidados a idosos. Todos os dias são conhecidos novos casos de infeção de utentes ou de funcionários de lares, por todo o país, mas não é conhecido o número exato de infetados nestas instituições. Ontem, o Governo pôs em marcha um plano preventivo, da responsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e do Ministério da Ciência e Ensino Superior, e começaram a ser testadas as pessoas dos lares de Évora, Guarda, Algarve, Aveiro e Lisboa – uma escolha que foi, desde logo, alvo de críticas.
Em Resende, por exemplo, no distrito de Viseu, onde foram detetados os primeiros casos de infeção por covid-19 em lares, a medida do Governo ainda não chegou e não é conhecido o dia em que serão feitos os testes. Ao i, Manuel Garcez, presidente da Câmara Municipal de Resende, explicou que os primeiros casos foram confirmados na Santa Casa da Misericórdia de Resende, mas que, neste momento, é preciso testar 125 utentes. O autarca disse estar há uma semana a “alertar a autoridade de saúde” sobre a necessidade de fazer testes e esteve, até ontem à tarde, à espera de uma resposta da Autoridade Regional de Saúde do Norte para saber se iriam ser feitos testes de urgência, ou não. Até ao fecho desta edição, Manuel Garcez ainda não tinha uma resposta e ponderava avançar com testes feitos em laboratórios privados, assumindo o município estes custos.
As críticas à distribuição geográfica dos testes multiplicaram-se durante o dia de ontem, com os autarcas a defenderem que estes deveriam ter começado nas zonas onde existem mais casos. De acordo com o boletim diário da Direção-Geral da Saúde, das dez cidades com mais casos confirmados, só Lisboa ficou no lote dos primeiros distritos a serem testados. Para as restantes – Porto, Vila Nova de Gaia, Maia, Matosinhos, Gondomar, Ovar, Coimbra, Braga e Valongo – ainda não são conhecidas datas. No entanto, como ainda não foi divulgado o número de casos nos lares, não é possível indicar se as cidades com mais pessoas infetadas são também aquelas onde existem mais idosos infetados. Dado o panorama, alguns municípios preferem adiantar-se, pedindo aos laboratórios que sejam testados os utentes e funcionários dos lares – uma despesa que ficará do lado das respetivas autarquias.
A Câmara Municipal do Porto decidiu avançar sozinha com a realização dos testes ainda antes da decisão do Governo. No domingo, começaram as recolhas para o “programa de rastreio completo a todos os lares da cidade”, referiu o município em comunicado, acrescentando que os testes serão feitos “a cerca de dois mil idosos”. Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, fez também críticas à decisão da tutela dizendo que “as escolhas que estão a ser feitas não respondem à dimensão relativa da crise sanitária”.
Na Maia segue-se o mesmo caminho e, a partir de hoje, começam a ser feitos os testes em todos os lares públicos e privados da cidade. A medida foi já anunciada no sábado e, a propósito desta decisão, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, referiu que fazer testes como medida isolada pode dar “uma falsa segurança”. “Dentro dos lares e dentro de todos os sítios onde existam várias pessoas a conviver devem manter-se no dia-a-dia hábitos de distanciamento social durante semanas, durante meses”, acrescentou. Estas declarações, em tom de alerta, foram dadas no domingo, antes de ter sido tornado público que a tutela iria começar a testar todos os lares.
Aliás, em Vila Nova de Famalicão, onde os idosos de um lar tiveram de ser transferidos para o Hospital Militar do Porto, a notícia de começar os testes onde existem menos casos registados também não caiu bem. Paulo Cunha, presidente da Câmara de Vila Nova de Famalicão, deixou o alerta: “Deve-se ou não testar os utentes e colaboradores de lares? A ministra da Saúde diz que não, mas a ministra da Segurança Social vai fazê-lo. Por onde começa o rastreio? Pelo Norte, onde há mais casos? Não, pelo Centro e Sul. Isto chama-se desnorte”. Ao i, o município avançou que já se disponibilizou “junto das entidades de saúde para suportar os custos de um rastreio geral à população sénior institucionalizada”.
O i tentou contactar a Santa Casa da Misericórdia de Aveiro, o Ministério da Ciência e do Ensino Superior e o ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, mas até à hora e fecho desta edição, não foi possível obter qualquer resposta.
10 mil testes é suficiente? A previsão do Governo aponta para a realização de 10 mil testes, a um ritmo de entre 200 a 300 testes por dia. Este é também outro ponto para críticas, já que não existem apenas 10 mil idosos nos lares.
Ao i, Ricardo Pocinho, presidente da Associação Nacional de Gerontologia Social (ANGES), garantiu que “os testes são poucos” e as “medidas são tomadas muito devagar, a conta-gotas”. “Hoje temos cerca de 800 mil idosos em internamento. Quando falamos de 10 mil testes, isto é um valor mínimo ”, acrescentou.
Neste momento, referiu a ANGES, “há necessidade de fazer testes, isolar utentes e que os funcionários residam nas instituições – não que trabalhem 24 horas por dia, mas que não saiam de lá para evitar contágio”.
Em Braga, um lar conseguiu resolver a escassez de recursos humanos, depois de 18 funcionários testarem positivo à covid-19, encontrando mais auxiliares, que vivem temporariamente em duas tendas montadas junto à instituição. Naquele lar, há 23 utentes infetados e registam-se já três mortes. No entanto, foi possível encontrar soluções de isolamento, evitando que todos os idosos fossem transferidos para o hospital.
Já em Barcelos, os utentes do Centro de Apoio e Solidariedade da Pousa que não estão infetados serão transferidos para um hospital privado, segundo avançou ontem Miguel Costa Gomes, presidente do município de Barcelos. “Vamos retirar do lar os que não estão infetados e colocá-los uma unidade de saúde privada”, disse Miguel Costa Gomes, acrescentando que o lar “não tem condições internas”.
Os lares estão a ser geridos de forma independente e cada instituição aplica as regras que entende – uma gestão que, na opinião da ANGES, deveria ser repensada. “Este é um setor desgovernado, cada um responde por si. Mesmo tratando-se de um setor privado, o Governo tem de tomar medidas únicas”, afirma Ricardo Pocinho. E deixa o aviso: “Este calcanhar de Aquiles pode levar ao colapso do Sistema Nacional de Saúde”.