Ninguém, no seu perfeito juízo, está hoje em condições antecipar o amanhã. Vivemos tempos de total incerteza e angústia perante esta espécie de pesadelo coletivo. Contar como será é um jogo perigoso. Desejar e sonhar é outra coisa. Isso sim, podemos tentar, fazendo do passado uma aprendizagem e do hoje um desafio.
Nos últimos quatro anos, recusei engrossar o pelotão dos silêncios cúmplices e repeti, vezes sem conta, que vivíamos tempos particularmente difíceis no Serviço Nacional de Saúde. Fui intransigente na denúncia, no confronto e na exigência de mais meios, recursos humanos e organização. Não fugi ao combate, tantas vezes em contramão.
A verdade é que as mulheres e os homens são tanto maiores quanto forem capazes, sem hipocrisias, de levantarem as armas em tempo de guerra e de as deixarem por terra no momento da paz. Nós somos os tempos que vivemos. E chegou a hora de nos unirmos, pela saúde de todos. A pandemia do covid-19 não me fez esquecer as debilidades que denunciei.
Não fizemos o suficiente nos últimos anos para cuidar do SNS, mas é ele que nos vai salvar. Que ninguém tenha dúvidas disso. Serão os nossos enfermeiros, médicos, técnicos e auxiliares. Serão os nossos hospitais. Nós, todos.
O tempo é de emergência e de combate, mas também de proteger quem está na linha da frente. A única linha. Compreendo o estado das almas de quem todos os dias, com família em casa, bate a porta para ir cuidar dos outros. É imperativo não colocar ninguém em risco, nem nos serviços, nem em casa. É por isso que faço um apelo para que nenhum enfermeiro arrisque prestar cuidados sem estar devidamente protegido. Não vale a pena camuflar a realidade.
Falta material de proteção em muitas linhas das frente. E essa situação é ainda mais preocupante quando pensamos no tempo de luta que ainda temos pela frente. É preciso concentrar os nossos esforços na construção de reservas sólidas.
Quanto ao resto, ninguém tem dúvidas do profissionalismo e espírito altruísta das nossas equipas de saúde. No que diz respeito aos enfermeiros, os portugueses sabem bem com quem contam, todos os dias, a todas as horas, tantas vezes quando não está mais ninguém. Nunca deixámos ninguém sozinho.
Não é tempo de olhar para trás. Sabemos que o país que hoje aplaude os enfermeiros é o mesmo que criticou as suas lutas e ignorou os seus gritos de alerta perante as debilidades do sistema. A verdade é que nunca é tarde demais, como cantava Pedro Barroso, para perceber, para acordar. Foi a este acordar que o agora nos chamou. Abrir os olhos e entender que nada poderá ser igual depois disto. Fomos chamados a cuidar uns dos outros, como nunca. Os governos não poderão voltar a olhar para a Saúde como a prateleira onde se arrumam os amigos, nem onde se justificam cativações.
Estaremos disponíveis para aceitar esta provocação? Queria acreditar que sim, mas tenho dúvidas. Perdoem-me o meu ceticismo. Temo que no final, quando ficar tudo bem, o poder volte a ceder à vaidade, ao egoísmo e ao compadrio. A essas coisas que pintam o lado mais negro dos humanos. Não. Não pode ser. Deixaremos de salvar bancos para proteger vidas. Deixaremos de garantir rendas suspeitas a parcerias de betão para investir nas pessoas que cuidam de pessoas. Recusaremos fazer da Saúde um negócio, para perceber que ela é nosso bem mais valioso.
Será assim o amanhã. Será esta história que contaremos aos nossos netos. Houve um vírus que mudou a nossa forma de estar, de sentir, enfim, de sonhar. Haverá sempre um amanhã para nós, tenho a certeza disso. Vamos poder passear na praia, ter tardes para entrelaçar as almas e olharmos nos olhos. Agora sou chamada ao combate, ter sangue frio, cuidar de todos, mas a seguir a isto vamos poder ser a mochila uns dos outros, que cada um de nós carrega para todo o lado. Viramos o mundo por quem amamos e quando o fazemos por amor haverá sempre um amanhã.
*Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros