Todos os anos morrem no mundo 1,2 milhões de pessoas de acidente de viação (dados de 2018), morrem cerca de 700 mil com SIDA (dados de 2019), 435 mil com malária (dados de 2017), morrem, por dia, 4500 seres humanos com tuberculose!
Num mundo com mais de 8 biliões de almas, comparar os números acima referidos com os ‘insignificantes’ 17450 óbitos provocados até hoje, 24 de março, em cerca de três meses e meio, pelo covid-19, até parece patético e desprezível.
Parece, mas não é.
O covid-19 provavelmente já mudou o nosso mundo para sempre. Com um efeito superior ao da sangrenta segunda guerra mundial ou do pavor da catástrofe nuclear, indiciado pelo holocausto de Hiroshima.
Um vírus desconhecido, não controlável pelo nosso conhecimento, exponencialmente transmissível, parou o mundo e colocou a nu as contradições da comunidade global.
Um pequeno ser microscópico, que se mete nas entranhas das células humanas, matando sem pré-aviso e sem distinguir raça, religião ou género, conseguiu esse prodígio.
Após a sua recente chegada ao nosso contacto, nada mais será com dantes, nas instituições de todo o mundo e na cabeça de biliões de humanos.
1. A liderança mundial
Muitas gerações, incluindo a minha, vivemos sob a égide da liderança americana. Fosse no papel de polícia bom ou mau, no de opressor ou libertador, mas muitas vezes no de primeiro bombeiro a chegar quando uma catástrofe trazia dor e sofrimento.
A ‘América First’ de Trump exacerbou com estardalhaço o que já se vinga a sentir desde as últimas administrações democratas. Um movimento autista e absurdo que renega a sua vocação de originária.
Primeiro com uma viragem para priorizar o mundo para lá do Pacífico e agora com o isolacionismo patrioteiro puro e duro.
A América altruísta, albergue de ‘todos’ os emigrantes, mosaico ideal da diferença humana, arrogante e ingénua, mas presente quando não havia mais ninguém para ajudar, estava, desde há muito, em estado comatoso. Pode ter morrido com a chegada do covid-19.
Assim, provavelmente, O Dia Mais Longo o Saving de Private Ryan e até o Apolo 13, passarão a ser filmes de ficção para os nossos netos.
Entretanto, por agora sem rival, uma nova China, pela primeira vez com vocação imperial, corre para ocupar o vazio.
2 . As organizações internacionais
As organizações internacionais do pós guerra – pós 1945, muito impulsionadas pelos Estados Unidos da América, pareciam ser o embrião de um espaço de cooperação harmoniosa da liderança do mundo.
ONU, OMS, UNESCO, ou até a OMC, esta só nascida no fim do século passado, perderam progressivamente a sua importância. Porque não se auto reformaram, adaptando-se à evolução do mundo e, também, porque o seu principal mentor e financiador, os Estados Unidos, as deixaram dolosamente cair.
Estas realidades vão acabar por ter que ser recriadas e, porventura, num novo ‘Conselho Permanente’ que as lidere, já não serão parceiros incontornáveis alguns dos impérios dos séculos 19 e 20, como os que protagonizavam a Grã -Bretanha, a França e os Estados Unidos. Mas é bem provável que na primeira linha estejam a China e a Rússia, talvez acompanhadas da Turquia, do México, do Japão. Uma antecipação parcial da premonição de Georges Friedman na sua previsão para a evolução do planeta nós próximo 100 anos.
Com boa vontade talvez haja um lugar no canto da mesa para uma UE, ou o que ainda resistir dela.
3 . A União Europeia
A União Europeia foi o mais criativo e bem sucedido projeto político da segunda metade do século XX. No pós guerra fria deu grandes passos em frente, liderado por grandes estadistas, como Delors, Mitterrand e Koll.
Após a mudança de geração, com um alargamento politicamente defensável, mas extemporâneo, foi tomada pela burocracia, pela mediocridade e por uma gritante falta de visão estratégica.
Tornou-se num espaço tecnocrático, onde não há sequer indícios, há quase um quarto de século, de avanços em áreas fundamentais: na política externa e de defesa, na política de efetiva harmonização económica e social, na política de aprofundamento dos instrumentos democráticos de participação e decisão.
Tudo isto fez com que os cidadãos, antes aliados entusiasmados do projeto, lhes virassem as costas e se posicionassem num espaço que vai da indiferença à rejeição.
Esta UE foi um caos quase escabroso quando da última crise financeira do pós 2008 e está a ser uma inexistência atabalhoadas e tonta no combate à atual pandemia.
É com desgosto e com muita vergonha que, como europeísta dececionado, assisto ao que há duas décadas me pareceria uma visão vinda de um filme de terror.
Em Itália e Espanha, desembarcam garbosos, de bandeira na mão – só faltando os cânticos revolucionários – técnicos solidariamente remetidos pelas ‘democracias’ russa, chinesa e cubana!
Inacreditável. Mitterrand, Knoll, Delors e Thatcher têm tudo para se beliscarem incrédulos lá no além onde se encontram.
Onde está o pelotão de reserva estratégica para calamidades da União Europeia? Não existe, como não existe concertação europeia sobre nada de verdadeiramente importante para o nosso futuro coletivo.
Este fiasco pode estar a decretar o dia de finados de um belo e sonhador projeto, único, de progresso e justiça social.
A prova dos nove será daqui a uns tempos, quando da observação de qual vai ser a reação institucional da Europa ao descalabro económico e social, após ser contida a crise de saúde pública.
Se assim não for, lá para 2025, talvez já tenha sido substituída pelas uniões dos países escandinavos e bálticos, pela união dos países mediterrânicos, pela união franco/germânica, pelo renovado Benelux!
4. O ‘novo mundo’
Esta crise tem mostrado o mundo sem a hipocrisia da maquiagem dos poderosos que nele mandam, ou mandavam.
Tem mostrado gigantes imperiais como a Grã Bretanha ou os Estados Unidos, ou promessas também gigantescas, como o Brasil, liderados por anões intelectuais. Alguns ao nível da mais ridícula indigência intelectual. Eleitos!
Tem evidenciado uma Europa, berço da democracia e do Estado Social, sucumbir face à eficiência das ‘ditaduras modernas e pragmáticas’!
Tem ‘trocado’ a morte trágica de homens pela vida de peixes, golfinhos, aves nas florestas submersas do lago Zhangdou ao lado da martirizado Whuan, locais que até há semanas sufocavam em mares e atmosferas poluídas, vazias de vida! Cidades que não viam o céu azul há muitos anos!
Tem mostrado famílias cujos membros pouco se viam, nem faziam uma refeição conjunta à anos e agora redescobrem o prazer de conversarem, de se apoiarem nos seus problemas, de viverem a vida com devia ser vivida!
Tem evidenciado que se pode passar sem shoppings, sem consumo em catadupa e desnecessário e que um grande problema do quotidiano séria facilmente resolvido pela ferramenta rudimentar que nunca quisemos ter em casa!
Talvez esta crise e o sofrimento a ela injustamente associado de forma discricionária, mostre que o caminho autodestrutivo que seguimos nos conduz a simulações artificiais de felicidade.
Tenho esperança que a maioria compreenda e que assim o mundo onde os meus mais pequenos descendentes vão viver se assemelhe, pelo menos, aquele onde eu fui criança e cresci.
*Luís Filipe Menezes, ex-líder do PSD