Bob Astles era pouco mais do que um adolescente quando deixou a Grã-Bretanha. O seu destino? África. Astles não era o seu nome de batismo: não gostava de Asketill e resolveu fazer um espécie de lifting ao apelido. Natural de Ashford, no condado de Kent, nunca foi flor que se cheirasse. Em 1949, com 25 anos, fazia parte de um regimento do British Indian Army que combatia na região do Buganda, o atual maior reino do Estado do Uganda. Foi-se deixando ficar por lá até à independência do país, foi requisitado como oficial do Ministério do Trabalho e fundou a Uganda Aviation Services, primeira companhia aérea nacional. As suas relações de amizade com Milton Obote, o primeiro presidente do Uganda livre, criaram-lhe um nunca mais de problemas quando o seu inimigo figadal, Idi Amin, tomou o poder pela força das armas. Mas não era à toa que Bob tinha a alcunha de Rato Branco. E a sua espinha dobrava com a facilidade de um ramo de vime ao sabor do vento
Dora Bloch era Feinberg de solteira. Conheceu o marido, Aharon, na Palestina onde este prestava serviço no exército britânico. Tiveram três filhos e viveram tranquilamente em Tel-Aviv. Até ao dia 27 de junho de 1976, quando apanhou o voo 139 da Air France, um Airbus300B, a caminho de Paris, com escala em Atenas, onde faria a conexão com Nova Iorque, seu destino final. Dora estava particularmente feliz: ia festejar o aniversário do seu filho mais novo, Daniel. Levava o peito a rebentar de uma ternura de mãe. E de avó, porque também iria rever os netos.
Michel Bacos era um piloto experimentado e profundamente fiável. Às 8h59 minutos, a aeronave que conduzia ergueu-se nos céus de Tel-Aviv e os passageiros puderam desfrutar a vista da cidade acabada de acordar. Às 11h30 aterrou em Atenas. A viagem decorrera sem problemas. Nem sequer a mais ligeira das turbulências. O pior estava para vir.
No aeroporto de Ben Gourion, em Tel-Aviv, tinham embarcado 258 passageiros. 38 desembarcaram definitivamente na capital grega. 58 subiram a bordo para a fase final do voo. Quatro deles com uma missão bem específica.
Dora Bloch tirava prazer da viagem. Lia um livro em hebraico, ela que falava corretamente inglês, francês, russo, árabe, alemão e italiano. Tinha 74 anos e um aspeto bondoso. Estava demasiado distraída na leitura para perceber o que estava a ser preparado por quatro das pessoas que tinham entrado a bordo do Airbus em Atenas. Mas reparara que as hospedeiras começavam a fazer diligências para distribuir o almoço, o que a consolou porque sofria de úlcera. Olhou para o relógio: eram 12h20. Tinham deixado Atenas há oito minutos. Minutos decisivos na sua vida. A morte espreitava-a e atacá-la-ia da forma mais canalha do que alguma vez poderia ter imaginado.
Jalil al-Arja e Abdel-Latif Abel-Razek al-Samrai, acompanhados por um falso peruano de nome Arturo Garcia (chamava-se na realidade Wilfried Böse) e por uma equatoriana igualmente de pacotilha, Maria Ortega (Brigitte Kulhmann), estes dois mais tarde identificados com as Revolutionäre Zellen, as Células Revolucionárias, uma organização auto-descrita como de guerrilha-urbana, considerado como um mais perigosos grupos terroristas-esquerdistas das décadas de 1970 e 1980, assumiram rapidamente o controlo da aeronave e cortaram totalmente os contactos com as autoridades aeroportuárias francesas e israelitas. O Airbus300B desapareceu dos pólos de contacto até que, por volta das 14 horas, comunicou à torre de controlo de Bengasi, na Líbia, que necessitava de reabastecer combustível que permitisse mais quatro horas de voo e exigiu que, ao aterrarem, estivesse à sua espera um representante da FrenteNacional daLibertação da Palestina. Ficou-se então a saber que a operação fora ordenada por um grupo dissidente da FNLP com sede no Iémen e liderado por Waddie Haddad.
27 de junho: 15 horas. DoraBloch sente medo, muito medo. Não é a única. Uma mulher sentada dois lugares atrás do seu entra em histeria. Dora oferece-se para servir de tradutora já que ele se recusava a falar qualquer outra língua senão o hebraico. Convence toda a gente que a sua gravidez está à beira de um aborto. É libertada. Na verdade fora uma farsa. Ia apenas a caminho de Londres para assistir ao funeral de sua mãe. Provavelmente chegou a tempo. E enganou toda a gente.
Onde está Dora Bloch?
Israel fervilhava de reuniões. Shimon Peres, ministro da Defesa, Yigal Allon, das Relações Exteriores, Gad Yaakobi, dos Transportes e Zamir Zadok, da Justiça, discutem a situação de 77 israelitas sequestrados no Airbus300B. O tempo passa. Às 21h50 o presidente líbio Muammaral-Gaddafi autoriza pessoalmente que o avião levante voo. Destino? Entebbe, no Uganda, onde aterra por volta das três da manhã. Os reféns são transferidos para um edifício antigo que servira de terminal do aeroporto. Dora passa pelos momentos mais angustiantes da sua vida, mas o pior está para vir. Muito pior.
A Operação Entebbe ficou para sempre na memória dos que viveram aquele tempo. No dia 4 de julho, um grupo de tropas de assalto anti-terroristas israelitas comandadas pelo General-Brigadeiro Dan-Shomron tomou conta do aeroporto, mataram os quatro piratas aéreos, libertaram os reféns, transportaram os de nacionalidade israelita de regresso a casa e o avião da AirFrance levou os restantes para Paris. A ordem tinha sido clara: morte aos piratas do ar sem piedade; abater qualquer soldado ugandês que se opusesse à operação. Total: 54 corpos estendidos por todo o aeroporto de Entebbe, vários aviões militares reduzidos a bolas de fogo.
A família de Dora foi conduzida para o complexo militar de HaKirya, em Tel-Aviv, como várias outras que esperavam ansiosamente pelos seus parente que haviam passado momentos terríveis. Mas Dora Bloch não estava a bordo de nenhum dos quatro C-130 Hercules que transportavam os sequestrados na abençoada viagem do alívio. O Destino decidira resolver as coisas de uma forma completamente inesperada.
Dora era uma mulher valente mas de estômago frágil, ferido por uma úlcera. Durante a fase de reclusão já em Entebbe sofreu dores agudas e acabou por ser transportada para o Mulago Hospital, em Kampala, capital do Uganda. Dir-se-ia que perdeu todo o espetáculo montado no aeroporto pelos soldados, jipes e outros veículos de transporte. Mas, mais grave do que isso, perdeu o avião e, pelo caminho, também a vida.
Palavra de Rato…
«Só alguns sádicos ascorosos e perversos levarão para a cova a verdade: o corpo de Dora Bloch foi queimado com ela morta ou ainda viva?» Quem colocou esta questão a um jornalista inglês, Mike Parker, foi Bob Astles, o Rato Branco do Uganda. E revela a forma odiosa como a pobre senhora viria a ser tratada pelos acólitos de Idi Amin Dada, Sua Excelência Presidente Vitalício, uma das personagens mais repelentes da Humanidade.
Ainda no dia 4 de julho, mal foi noticiado que Dora Bloch não saíra do Uganda, Peter Chandley, o segundo-secretário da British High Mission em Kampala, dirigiu-se com a sua esposa ao Mulago Hospital e pode trocar com ela algumas palavras de conforto. A velhinha que sofria do estômago voltou a queixar-se da qualidade da comida e contou que a tinham avisado que iria ser transferida para o Grande Imperial Hotel, um dos melhores da cidade. Chandley era bom homem e, quando a visita terminou, resolveu ir comprar meia dúzia de acepipes que pudessem tornar a presença de Dora no hospital mais suportável. Quando voltou, umas horas mais tarde, a realidade era outra. Proibiram-lhe terminantemente a visita. Havia um aparato militar à porta e nas ruas mais próximas.
Farouk Minawa, chefe da polícia secreta do Uganda, e Nasur Ondoga, chefe de protocolo pessoal do presidente Idi Amin, tinham vindo buscar Dora mas não a deixaram, como prometido, no Grand Imperial. Aliás, ninguém conseguia entender para onde a tinham levado. Movimento top-secret com ordens diretas do presidente.
Num memorando secreto enviado para o Foreign Office, em Londres, escrito por James Henessy, principal comissário inglês no Uganda, levantava-se ligeiramente o véu sobre o que acontecera: «Our information was that she had been dragged from her bed at hospital screaming. (…) The parliament, the whole British people, were concerned about her fate. She appeared to be an innocent victim of the Israeli raid».
Tudo indicava, portanto para um rapto. E o memorando seguinte ia ainda mais longe: «The most likely scenario was that Mrs. Bloch was killed by Ugandan soldiers, bitter and dangerous following their disgrace at Israeli hands. About 50 Ugandan soldiers were killed by the Israelis during the raid. They may have seized on the only available Jew on whom to extract their revenge».
Infame. Mas infame também é um adjetivo demasiado brando para um assassino ascoroso como Idi Amin Dada.
O mistério
Nos dias que seguiram, os habituais testemunhos foram surgindo em catadupa. Uma mulher garantiu ter visto Dora no meio de um grupo de soldados ugandeses caminhando na beira de uma estrada a cerca de 18 quilómetros do centro de Kampala, algo muito pouco verosímil. No dia 15 de julho, para pôr um ponto final nas especulações, o Governo britânico ordenou uma busca organizada e aprofundada por Mrs. Bloch ou pelo seu corpo, o que demonstrava que a crença de ainda a encontrar com vida era demasiado ténue. A tensão chegou ao ponto de o Reino Unido cortar relações diplomáticas com o Uganda, algo que, no seu estilo apalhaçado, Idi Amin respondeu considerando-se Conquistador do Império Britânico e Rei da Escócia, títulos que acrescentou às dezenas que já tinha, cada qual mais ridículo do que o outro. Para a besta era como se o assunto merecesse apenas um sorriso, quanto mais uma gargalhada.
A correspondência clandestina entre Astles e Parker viria a tornar-se na maior fonte de iluminação do crime. O Rato Branco contou que Dora fora torturada até à morte nas sinistras instalações do State Research Bureau, a polícia do Estado. E que, passado uns anos ele próprio encontrara a campa de Mrs. Bloch coberta de mato no meio de uma plantação de ananases num lugar chamado Nakapinyi. «Quando confrontei Amin com o facto, ele entrou num dos seu habituais estados de fúria, com os olhos faiscando de ódio e acusou-me de ter sido eu a tratar do assassínio, embora estivesse em Londres ao tempo dos factos», escreveu Bob a Peter. «Ela era apenas uma velhinha doente e patética mas a polícia secreta estava embriagada de raiva contra tudo o que fosse israelita por causa da humilhação de que fora vítima em Entebbe. Um agente informou-se que a arrancaram da cama e começaram de imediato a esmurrá-la e a pontapeá-la. Os gritos ouviram-se por todo o edifício. Foi algo de bárbaro. A pobre senhora não podia defender-se. O seu corpo, segundo me disseram, foi queimado. E só alguns sádicos saberão se ele estava morta ou ainda viva quando lhe pegaram fogo. Os animais do Bureau gabavam-se por toda a parte que tinham dado cabo de uma mulher branca. E falavam à boca cheia onde a tinham sepultado, que me deu pistas para ir à procura do local».
Ilan Hartuv, filho de Dora, não descansou. Encontrar os restos mortais da mãe e devolvê-los a Israel tornou-se quase numa obsessão. Conseguiu entrar em contacto com o Dr. Henry Kyemba, o médico que visitara os reféns no aeroporto de Entebbe, que chegou a Ministro da Saúde de Amin mas acabaria por desertar e escrever um livro terrível expondo as bestialidades do regime ugandês – ‘A State of Blood: The Inside Story of Idi Amin’ – e este confirmou-lhe que dera a ordem para transferir Dora para Kampala. Em 1987, Kyemba confirmou aquilo que já todos sabiam: Idi Amin dera ordens diretas a alguns soldados de elite da sua guarda pessoal para tirar Dora do hospital e levá-la para a sede da polícia secreta onde foi morta a tiro e depois transportada para longe num camião militar. O guarda que a vigiara durante dois dias foi igualmente abatido.
No dia 3 de junho de 1979, Amin foi arredado do poder após o final da guerra entre a Tanzânia e o Uganda, com o presidente tanzaniano Julius Nyerere a auxiliar o seu bom amigo Milton Obote a regressar ao poder. De um momento para o outro, o canalha de Kampala tornou-se procurado por toda a parte por gente sedenta de vingança. Fugiu para a Líbia, mas Gaddafi fartou-se dele rapidamente. Seguiu para a Arábia Saudita onde viveu o resto da existência na companhia das suas quatro mulheres e dos seus 50 filhos.
Entretanto, as tropas invasoras encontraram a sepultura de Dora Bloch por entre canas de açúcar e ananases a mais de 30 quilómetros de Kampala, à beira da Jinja Road, uma das estradas mais frequentadas do país. Para quem queria reserva, era até um local bastante público. O reconhecimento facial de Dora foi impossível. A cara tinha sido queimada de uma forma absolutamente mórbida. Seria um patologista do exército israelita, o Dr. Maurice Roggoff, a identificar o cadáver como sendo de Bloch através de análises dentárias.
Ilan conseguiu, finalmente, levar a mãe para casa. Israel concedeu-lhe honras de exéquias de Estado ao mesmo tempo que o seu caixão mergulhava sem regresso no retângulo de terra aberto junto ao Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Servira como objeto de vingança na pureza da sua enorme fragilidade. Talvez tenha, finalmente, encontrado a paz depois dos últimos horrendos dias da sua vida que a tornou uma vítima triste do cúmulo da maldade humana. Parece que Shakespeare tinha razão quando escreveu em A Tempestade: «O inferno está vazio. Todos os demónios estão aqui».