O fundamental é resistir

Nós portugueses, sem nacionalismos ou muito menos chauvinismos estúpidos e presunçosos, temos estado bem . Nalguns casos mesmo muito bem. Tivemos a sorte, cá para nós uma “sorte” que como sempre deu muito trabalho, de ter no comando do aparelho de Estado gente capaz. 

Bom dia. Escrevo na manhã de sexta-feira 3 de abril de 2020. Para o SOL de amanhã sábado. A síntese possível em duas ou três notas breves de reflexões pessoais sobre o drama que estamos a viver. Com esta primeira nota de localização temporal que a evolução rápida das circunstancias tem exigido.

A dimensão descomunal, no plano humano, geográfico, de saúde e sanitário, social, politico, de sistemas políticos e mediáticos, desta ‘onda’ gigantesca. Tão forte que, em certos casos nacionais bem perto, nos submergiu tragicamente de forma avassaladora. Tem sido comparada por muitos com um tsunami, a tragédia internacional mais fresca na memória. Mas é indiscutivelmente uma vaga maior, muito maior, em altura e largura. Tem tocado a todos em quase todos os azimutes. Sem distinções de condição social, etnia, crenças religiosas, ou natureza democrática ou não das sociedades a que pertencemos. Nesse plano uma primeira lição muito importante.

Uma epidemia, pandemia, com dimensão de tragédia mundial. Há que reconhecer, raros, raríssimos, previram ou imaginaram. Distingo aqui Bill Gates e a prevenção que fez com clareza em 2015, aquando da crise do Ébola que o mobilizou na reflexão sobre estas questões. Mas infelizmente há que reconhece que no universo académico, nos sistemas políticos, nas organizações internacionais e nacionais de especialidade, ninguém foi capaz de prever. Muito menos prevenir. Não resulta para mim daqui que se perca tempo agora a encontrar bodes expiatórios. Infeliz vicio nacional, e internacional, de arreigadas tradições mas que é sabido não conduz a nada. Senão muitas vezes a agravar as coisas e nível de drama. Daqui resulta pelo contrário, para mim, a primeira prioridade obvia, saber distinguir, como sempre é indispensável nos grandes desafios, o essencial do acessório. Nesta hora tão difícil, e nas muitas que se seguirão, o fundamental é resistir.

Salvar vidas, todas as que forem possíveis sem qualquer espécie de distinções. Preservar e defender a saúde de quem ainda não foi tocado. Tratar quem está doente, e sofre. Com os recursos disponíveis, e os que haverá que criar e inventar. Como aliás tem estado a ser feito, um pouco por todo o lado. De forma desigual por certo, e também muito dependendo do nível de educação, cultura, formação cientifica dos quadros, imaginação, desembaraço, capacidade criativa e de resposta, dos vários aparelhos produtivos nacionais, e de dimensão internacional. 

Daqui resulta, penso que para todos, aquela que não pode deixar de ser a dimensão primeira da resposta, ser global, solidária e de unidade. A unidade possível, mas absolutamente indispensável. Estamos neste plano, nos vários continentes e regiões do mundo, muito aquém do que poderíamos e devíamos. A começar pela Europa, onde atá aqui a escassa dimensão unitária da resposta tem infelizmente confirmado o declínio e a crise do mais belo e revolucionário projeto  dos últimos séculos. Sem falar da dimensão ‘repugnante’ de algumas posições assumidas.

Aqui entra também, na minha opinião, a dimensão negativa e positiva, do fator humano no plano individual e coletivo. Nós portugueses, sem nacionalismos ou muito menos chauvinismos estúpidos e presunçosos, temos estado bem . Nalguns casos mesmo muito bem. Tivemos a sorte, cá para nós uma “sorte” que como sempre deu muito trabalho, de ter no comando do aparelho de Estado gente capaz. Qualificada, mobilizada, unida, serena e corajosa. Na Presidência da República, no Primeiro Ministro, no Governo, nos Governos Regionais, nas autarquias, nos comandos dos vários ramos das Forças Armadas e no seu CEMGFA, nas Forças de Segurança, temos tido a sorte de praticamente sem exceções termos as pessoas certas, na hora incerta. Sem problemas visíveis, e muito menos perturbadores, de ego. Pudessem outros, noutras latitudes e também na nossa Europa, beneficiar desta sorte e as coisas poderiam ter sido, e ser, algo diferentes. Dou rosto ao que digo, as circunstancias exigem clareza como nunca. As Américas, Sul e Norte, terem que acrescer às muitas dificuldades e desafios que enfrentam, e enfrentamos, aquelas duas lamentáveis ‘lideranças’, Bolsonaro e Trump. É má ‘sorte’ que não se deseja a ninguém. Prejudica, e muito, a dimensão mundial da resposta. Nomeadamente na ONU, onde António Guterres, por essas e por outras limitações, não pode dar aquilo que provou poderia e sabe, dar.

Mas insisto, o tempo não é ainda para esses balanços. Agora a prioridade das prioridades é salvar vidas. Tratar quem está doente. Conseguir manter a resposta sanitária e hospitalar em condições de responder com dignidade e meios, à progressão inevitável do número de doentes. Evitar, na medida do possível, com coragem sem bravatas, audácia, abertura de espírito, ponderação, maturidade, serenidade, a progressão da doença. Evitar a dimensão catastrófica trágica do que tem estado a acontecer com alguns amigos e parceiros europeus a quem pouco pudemos valer. Tudo é ainda possível. Infelizmente até o mais trágico dos cenários. Não é ainda tempo em que possam fazer previsões seguras. Por regra há que contar sempre com o pior. Se não acontecer, melhor.

Mas isto dito e sem querer cair em excessos de otimismo, extemporâneos e insensatos, penso que posso avaliar com serena prudência, e a maturidade que a experiencia longa e variada da vida me deu , que nós portugueses temos estado bem.

Resistimos, e estamos a resistir, bem. «Unidos como os dedos da mão» como dizia o poema de José Gomes Ferreira, cantado noutros tempos, também difíceis, pelo coro de Lopes Graça. «Havemos de chegar ao fim da estrada», porque como nos disse também Manuel Alegre «mesmo na noite mais triste… há sempre alguém que resiste». Somos dos que resistimos. Honrando até momentos marcantes da nossa história. São nossos, mas sobretudo da humanidade. Então, dobrámos com essa audácia, coragem sem bravata, tenacidade, serenidade, de que tanto precisamos hoje, um Cabo. Que graças a nós, das Tormentas se transformou em Boa Esperança. Vamos voltar a dobrá-lo, juntos. 

Saúde e Fraternidade.
 

por João Soares
Ex-deputado do PS