Precisamos mesmo das coronabonds?

A troca de galhardetes entre Norte e Sul da Europa voltou em força em torno das coronabonds. O mecanismo envolve um rebranding da cronicamente contenciosa questão das eurobonds, ou seja, emissão de dívida conjunta por parte dos países da União Monetária.

Estas obrigações seriam emitidas sob a sigla da União, e garantidas pelas finanças de todos os seus países – a famosa mutualização de dívida. Obviamente, que a fatia de leão desta garantia seria fornecida pelos contribuintes dos países com finanças mais equilibradas e essa é precisamente a fonte da divisão entre Norte e Sul. As coronabonds seriam um sinal forte em direção a uma união federal (será que o Sul deseja realmente abrir essa caixa de Pandora?), mas em termos práticos já se encontram ativos mecanismos que permitem uma mutualização de riscos em tudo semelhante.

A meu ver, a insistência num programa de mutualização explícita que continua politicamente tóxico – e que nunca seria aprovado pelos eleitorados a norte nesta fase – serve principalmente propósitos propagandistas numa altura em que muitos incumbentes degladiam-se com um escrutínio sem precedentes dos respetivos sistemas de saúde. Deduzo isto porque foram já ativados mecanismos económicos que permitem a mutualização de grande parte do esforço financeiro para amortecer o choque económico da pandemia.

Temos duas novidades recentes que permitem gerar uma mutualização na prática muito semelhante às coronabonds, com muito menos toxicidade política e burocracia morosa envolvida. Dum lado temos as recentes medidas do BCE que anunciou um programa suplementar de compra de obrigações no valor de 750 mil milhões de euros, o Pandemic Emergency Purchase Programme (PEPP), ao que juntou a abolição do limite percentual – 33 por cento – que pode deter de cada emissão específica (um limite que restringia a capacidade de comprar dívida portuguesa por já deter valores próximos do teto).

Do outro, a União veio eliminar temporariamente os limites de défice em vigor no pacto de estabilidade, permitindo assim mais endividamento público a cada estado membro para responder aos desafios do covid-19. Juntando estas medidas, temos um cocktail muito semelhante às coronabonds com drasticamente menos complicações políticas. Cada estado emite a sua dívida para fazer face ao esforço fiscal e o BCE utiliza o PEPP para a comprar. As obrigações soberanas no balanço do BCE estão na prática mutualizadas e o juro pago é transferido de volta para os cofres de cada país. Entramos num processo de virtual monetização da dívida, em que o risco a ter em conta – neste momento – é o de inflação mais que o orçamental. Sobre essa questão dois pontos:

1. Numa fase de abrupto abrandamento de atividade esse nunca será um risco material; e,

2. É falacioso assumir que uma emissão de coronabonds com dimensão à altura desta crise pudesse ser totalmente absorvida pelo mercado e não precisaria de recorrer a impressão por parte do BCE.

A dramatização em torno do tema coronabonds torna-se portanto na própria fonte de desunião e mal-estar europeu que os seus proponentes alegam querer combater. E mais, representariam um passo marcante em direção a uma união federal que julgo nem os eleitorados do Sul estão prontos a tomar de forma consciente. O revés da moeda de fundos quasi-federalizados – como as coronabonds – é ainda mais perda de soberania nacional.

*Gestor de fundo de investimento macro