Advertências prévias
Insisto constantemente em que no Novo Testamento há duas ‘definições’ de Deus — evidentemente, Deus não é definível, mas são tentativas de dizer algo sobre o seu mistério. Na Primeira Carta de São João, está escrito que Deus é Agapê, Amor incondicional. O Evangelho Segundo São João começa assim: «No princípio, era o Logos e o Logos era Deus. E tudo foi criado pelo Logos». Logos significa palavra, razão, inteligência. Deus é, portanto, Amor e Razão e, assim, a existência humana autêntica resultará da convergência e interpenetração da bondade e da razão, da inteligência e do amor.
Também a fé não só não pode contradizer a razão como deve ser razoável e, como diz São Pedro, é preciso dar razões da esperança.
Dou exemplos, para mostrar a necessidade de compreender e superar ideias feitas.
1.Jesus andou sobre as águas, como está no Evangelho? Não. Na perspetiva bíblica, o mar é símbolo do mal; dizer que Jesus andou sobre as águas é dizer que ele está acima do mal e nos liberta dele, como fez com São Pedro, que já estava a afundar-se. Percebe-se então o que está no Apocalipse, o último livro da Bíblia: «Haverá um céu novo e uma nova terra e já não haverá mar», isto é, já não haverá mal.
Falando no Apocalipse, é preciso, nestes tempos terríveis, prevenir contra as profecias do horror e do fim do mundo. Impõe-se saber ler. De facto, o Apocalipse tem o sentido oposto ao vulgarizado: em tempos de perseguição, quer, utilizando linguagem simbólica e até cifrada, animar os cristãos, que devem confiar na vitória de Deus e de Cristo. E os números? É este o seu significado: 3 é um número perfeito e o número de Deus; 3+4=7 ou 3×4=12, para simbolizar a plenitude (os dias da criação ou a aliança de Deus, respetivamente), os 144.000 assinalados são o múltiplo de 3x4x12x1000 – 1000 também é a plenitude – e simbolizam o novo povo de Deus. Em sentido contrário, a metade destes números só pode significar o não-tempo de Deus e a sua não-aliança, como é o caso de três e meio e de seis. Assim, 666 é o número da Besta, um símbolo numérico do nome e título de Domiciano, imperador perseguidor.
2.Jesus ressuscitou mortos? Não. Caso contrário, como é que, sendo o Além o maior abismo da nossa curiosidade, ninguém perguntou a Lázaro como é, se esteve lá quatro dias? Os relatos sobre as ressurreições operadas por Jesus são o que se chama ‘parábolas em ação’. O seu conteúdo é o anúncio da esperança firme na vida eterna: o que o crente espera para lá da morte – a vida plena em Deus – já está presente na fé.
3.O Anjo apareceu a Nossa Senhora para lhe anunciar que ia ser mãe de Jesus? Não. O que lá está é muito mais profundo, pois o que é espiritual é sempre mais fundo e passa-se no interior: como todas as mães, Maria refletiu, meditou sobre o ‘milagre’ que lhe acontecera.
Nossa Senhora é virgem? Os Evangelhos não são um tratado de anatomia. O que lá está é que Jesus é especial, tem uma relação única com Deus.
4.Há milagres? No sentido estrito da palavra, isto é, uma intervenção especial de Deus para interromper o curso das leis da natureza e a favor de uns e não de outros, não. Um Deus intervencionista implica ateísmo, pois supõe que Ele criou e se afastou do mundo, para, de vez em quando, intervir nele a pedido. Ora, Deus Criador está sempre infinitamente presente à sua criação e aos seres humanos, que são concriadores. Há os milagres do amor.
5.Então, para que serve a oração? Rezar é estar com Deus, no mais fundo e íntimo de si, e falar com Ele como se fala com um amigo, com o pai, com a mãe. Porque Deus é Pai-Mãe. Falar-lhe das dúvidas e perplexidades. Fazer-lhe perguntas: porque é que, no meio dos horrores destes tempos de tribulação da covid-19, não faz nada? Será que existe? Jesus na Cruz gritou aquela oração que atravessa os séculos: «Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?», mas continuando a confiar: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito».
Pedir o quê? Pedir a nós mesmos força para fazermos o que devemos e generosidade para estarmos com todos, sobretudo com quem ninguém está.
Presença física e presença real
Entrando mais diretamente no que aqui nos traz, a pergunta é: os católicos acreditam na presença real de Jesus na Eucaristia? A resposta é clara: sim. Mas é urgente compreender, para não se cair no desastre.
Por exemplo:
1. Um bispo perguntou-me uma vez: «O que é que se responde a uma criança de 12 anos que, depois de uma procissão do Santíssimo, me veio dizer: ‘Tu não levavas o Jesus, pois não? Tu não podias com Ele!…’». Respondi-lhe: “O que é que se deve responder exatamente eu não sei. Mas sei que se não deve ensinar o que, depois, leva até uma criança a fazer observações dessas»;
2. Uma vez uma médica, crente, disse-me que tinha pena de não comungar. Mas ficou-lhe, de miúda, uma impressão tal do Corpo de Cristo na hóstia que ainda hoje, ao pensar em comungar, se lhe embrulha o estômago;
3. O filósofo Hegel viu bem o perigo da coisificação. Referindo-se à Eucaristia, escreveu que, segundo a representação católica, «a hóstia – essa coisa exterior, sensível, não espiritual – é, mediante a consagração, o Deus presente – Deus como coisa».
O que é que se passou?
Jesus, na iminência da morte, ofereceu uma ceia, a Última Ceia. Abençoando o pão e o vinho, que significam a entrega da sua pessoa, fiel à Verdade e ao Amor, por amor a todos, disse: «Comei e bebei todos. Fazei isto em memória de mim». Em hebraico, «Isto é o meu corpo, isto é o meu sangue» quer dizer: Isto sou eu, a minha pessoa, a minha vida entregue por vós. Os primeiros cristãos reuniam-se na casa de um companheiro ou companheira (de cum+panis: comer o pão em conjunto) e, recordando essa Ceia e todos os banquetes que Jesus teve com tantos, incluindo pecadores, a oferecer o júbilo da salvação, e tudo o que Jesus fez e é, celebravam ‘o partir do pão’, uma refeição festiva e fraterna, abertos à esperança de um futuro novo na plenitude da Vida, porque Jesus é o Vivente para sempre.
Depois, também porque eram acusados de não oferecerem sacrifícios à divindade, a Missa foi perdendo o caráter de banquete festivo e fraterno e começou a ser concebida mais como sacrifício. Havia aí uma imolação – ainda li isso num manual de Teologia: uma mactatio mystica Christi (matação mística de Cristo) – e discutia-se se essa imolação era real, moral, sacramental.
Daqui resultaram equívocos tremendos. É claro que Jesus não fugiu, aceitou a morte de cruz e entregou-se a si mesmo a Deus. Mas não à maneira de vítima sacrificial, para aplacar a ira de Deus. Jesus foi vítima dos homens e não de Deus. Uma conceção sacrificial contradiz a revelação essencial de Jesus: «Deus é Amor incondicional». Ele não precisa de sacrifícios expiatórios. É uma conceção arbitrária e sacrificial de Deus que leva alguns à blasfémia de dizer que esta covid-19 é um castigo de Deus. Por outro lado, com esta conceção sacrificial apareceu o padre-sacerdote que oferece o sacrifício e, consequentemente, o celibato obrigatório e a chaga do clericalismo, já que o padre adquiria um poder divino: o de, como ‘outro Cristo’, só ele ‘trazer Cristo à Terra’, realizando o milagre da transubstanciação, só ele perdoar os pecados, decidindo da salvação ou da condenação…
A Eucaristia deixou, pois, de ser celebração festiva em que todos participavam ativamente – e só assim fazia sentido –, para tornar-se um sacrifício objetivo autónomo, que o padre até podia celebrar sozinho e que oferecia pelas almas do purgatório e outras intenções. Era possível ir à Missa e não comungar, pois, nela, estava-se ‘de fora’. Acontece mesmo esta distorção: as ‘Missas oficiais’, a que assistem agnósticos, ateus, indiferentes, grandes ladrões, sem arrependimento nem qualquer propósito de emenda…
E volta a pergunta: Jesus está realmente presente na Eucaristia? Sim. Mas é preciso distinguir entre presença físico-coisista e presença real pessoal. Um homem e uma mulher, pela relação sexual, estão fisicamente presentes, mas, se não houver amor, estão realmente ausentes como pessoas. Também pode acontecer que tenham de estar fisicamente ausentes, por motivos de trabalho, por exemplo, mas, se houver amor, continua a presença real entre eles. Então, o que falta nas comunidades cristãs? A conversão ao projeto de Jesus. Precisamente nesta não conversão é que São Paulo via que «comemos o pão e bebemos o cálice do Senhor indignamente», tornando-nos «réus do corpo e do sangue do Senhor», isto é, culpados da sua morte: de facto, o que ele condena na comunidade de Corinto é que não haja partilha real e que, enquanto uns comem lautamente e se embebedam, outros passem fome.
Afinal, é tudo mais simples mas também mais exigente e libertador.
Concelebrar ‘coronoviricamente’
Na situação de confinamento em casa, porque é que as pessoas, isoladas ou em família, ao participar na Eucaristia pela televisão ou outros meios, não hão de concelebrar e comungar realmente e não só ‘espiritualmente’, como é aconselhado? Para ser real, não tem a comunhão de ser sempre espiritual? Quanto à confissão, porque não confessar-se por telefone ou, como disse o Papa Francisco, ‘diretamente’ a Deus? Aliás, o Catecismo já contempla, em caso de necessidade, a confissão direta, que tem os mesmos efeitos da absolvição: perdoa os pecados, desde que haja arrependimento sincero, reparação do mal feito e propósito firme de emenda.
Assim, frente à televisão, coloque-se na mesa pão e vinho, também uma vela, símbolo da luz de Cristo, acompanhe-se a celebração, escutando a Palavra de Deus, oferecendo o pão e o vinho, símbolos da nossa vida, que pedimos seja transformada e vivificada em Cristo ao serviço da Humanidade inteira. E partilhemos o Pão da Vida e o Vinho da alegria que não tem fim. E esperando poder em breve (quando?), de novo, como habitualmente em comunidade plena, unidos e todos juntos, dando as mãos, celebrar outra vez a Páscoa da Ressurreição.
Há oferta maior, mais felicitante, de esperança e sentido para a Humanidade do que o Evangelho vivo de Jesus? A realizar na vida e a celebrar em Eucaristia.
Anselmo Borges
Padre, Professor de Filosofia da Universidade de Coimbra