A primeira vez que me isolei a sério, foi por 6 meses, numa pequena cidade de França, em 2006.
O inverno que me esperava era bem diferente do nosso, com muita neve. Um frio que se propagava por aquele mês de janeiro, e que estava espelhado nas fachadas dos prédios, todos normativamente pintados de beije, amplificando assim a minha sensação de estar num sitio que me era alheio.
Frequentava a faculdade, procurei fazer amigos. Aprendi a dizer um sonoro ‘Bon jour’ sempre que entrava numa loja, ainda antes de saber dizer mais que meia dúzia de palavras. Era esse o meu objectivo, aliás; aprender Francês. Todos temos de encontrar um pretexto para nos lançarmos numa aventura.
As idas para as Beaux Arts eram de bicicleta. Tudo isso era entusiasmante, apesar do frio para o qual eu, claramente, não tinha a roupa e os sapatos adequados. Chegava sempre gelada a casa. Aí, sozinha comigo mesma, comecei a fazer tudo o que me fizesse sentir bem. Cozinhava – pratos de forno apesar de ter apenas um elétrico, de estudante – desenhava muito, tocava guitarra e ouvia muita musica. Via TV porque era um desafio entender o que diziam. E em Fevereiro, a minha irmã enviou-me o meu urso de peluche que eu guardo desde os meus 3 anos. O ‘Papi’ – alusivo ao meu pai, naturalmente – acompanhava-me desde miúda e agora estava ali também.
Sozinha em casa, comecei uma série de desenhos em que ele era o protagonista. Eu desenhava o negativo do espaço com a mão direita, e depois, com a mão esquerda, escrevia em Francês aquilo que o ‘Papi’ concluía. Era ele que dava sentido ao desenho, com uma frase, um pensamento. Sempre em francês.
Depois fiz dele a minha personagem para uma série de fotografias, e desenhei retratos seus a pastel de óleo, sempre imaginando o que andaria ele a fazer, 6 meses sozinho, em França, e o que é que o perturbava.
Aquilo tudo foi uma forma que encontrei de brincar com a minha criatividade. Não sei se não será justo, e útil até, dizer que foi a forma que encontrei para a minha sobrevivência emocional.
Comecei a sonhar em francês. E, por causa da minha insistência em aprender aquele idioma, sentia cada vez mais conforto em escrever na minha língua materna. Percebi que era impossível traduzir certas palavras, como Madrugada. Senti que havia uma especificidade no Português que me dava a liberdade de poder exprimir com exatidão aquilo que pensava.
Daí comecei a escrever canções em português. Elas estão gravadas num pequeno EP que lancei em 2009 como primeiro disco em nome próprio.
Fiz 10 anos de discos em 2019, celebrei-os no Coliseu de Lisboa com o meu público, a minha banda, a minha equipa. 10 anos começaram naquele disco, naquele disco que começou no mais profundo isolamento comigo mesma.
O meu pai escrevia-me amiúde. Quando voltei ele perguntou-me, com o seu ar poético e sapiente: «Então, gostaste de conhecer a Márcia?».
Gostei, sim.
Custou muito. Tive saudades. Senti-me sozinha.
Ao início, como estava entusiasmada, contava os dias que ainda me restavam e pareciam-me poucos. Mas a meio, depois de me roubarem a bicicleta, de ficar sem dinheiro e enfrentar algumas dificuldades, já não sabia como conseguiria aguentar aquela solidão toda, e a incerteza dos dias.
A estranheza dos sítios e das situações que desconhecemos, vai-se vencendo com o dia-a-dia. Procuramos a normalidade no meio do nosso caos interior, tentando agir como se pertencêssemos ao meio que agora nos envolve, sem termos ainda conseguido envolver-nos nele. Um dia que passa, é mais um dia em que avançámos.
Passo a passo, tudo passará. E no fim, nós saberemos mais.
por Márcia
Cantora e compositora