Bach. Os 20 filhos de João Sebastião pai!

Bach foi um dos mais prolíficos compositores do seu tempo e um dos mais prolíficos pais de todos os tempos. Alguns dos seus filhos atingiram fama internacional, outros acabaram na penúria, mas todos tinham orgulho no seu nome. 

Johann Ambrosius Bach e sua esposa amantíssima, Maria Elisabeth Lämmerhirt, foram reprodutores excelentes, se a expressão me é permitida com a devida vénia a ambos cuja passagem pela Terra já se perde nos labirintos da memória. Tiveram, no total, oito crias, a mais nova das quais ganhou um lugar de destaque na história da música, Johann Sebastian de batismo, ou João Sebastião assim com um toque de familiaridade que ele certamente não levaria a mal, sobretudo no estado em que se encontra, e falaremos sobre o assunto mais para diante. Aos 10 anos, já João Sebastião era órfão de pai e mãe: arrumou os trapinhos e foi instalar-se na casa do irmão mais velho, Johann Christopher, organista da igreja de St. Michael’s, em Ohrdruf, no Saxe-Coburgo-Altenburgo, que lhe fez o enorme favor não apenas de alimentar o seu insaciável apetite adolescente por salsichas e joelhos de porco com chucrute mas também de lhe ensinar a tocar clavicórdio.

Os Bach, família natural da Turíngia, não viviam sem música. O trisavô de João Sebastião, Vitus Bach, dedicava-se à gaita de foles quando tinha tempo livre na padaria; Johannes Bach I, filho do padeiro, foi o primeiro músico profissional, também dedicado à gaita de foles mas abandonando de vez a farinha e o fermento; Cristoph, avô de João Sebastião, conseguiu ganhar a vida como músico de igreja e Johann Ambrosius, seu pai, foi um organista de mérito. Como se vê, estava-lhes no sangue. Sangue que eles, aliás, trataram de espalhar abundantemente através daquilo que, nos versículos, a Bíblia resumiria como herança do senhor: filhos.

João Sebastião rapidamente aprendeu todos os segredos do clavicórdio e mostrou-se orgulhoso proprietário de uma voz maviosa, plena de requebros, que lhe forneceu uma bolsa de estudo na St. Michael’s School de Lüneburg, a duas semanas de distância de Ohrdruf, a pé, viagem que dividiu com um colega mais velho, Georg Herdmann, moço apessoado que viria a abrir-lhe muitas portas da alta sociedade, coisa fundamental para quem queria ser músico de profissão. Tendo concluído a graduação com uma perna às costas no a ano de 1702, com dezassete primaveras acumuladas na sua, até aí, meio monótona existência, não demorou mais de dez meses para ocupar o cargo de organista de uma igreja em Arnstadt, emprego que durou pouco pois foi rapidamente recrutado para um templo maior de uma cidade maior: Mühlhausen. Por essa altura já compunha e conquistara suficiente independência financeira para arrastar a asa a Maria Barbara Bach, por acaso filha de Johann Michael Bach, filha do primo direito de seu pai, um ano mais velha do que ele. 

Mas J.S. tinha um rival. Seu aluno, ainda por cima, um tal de Gayersbach. Parece que, aproveitando uma esfrega que João Sebastião lhe tinha dado numa aula de fagote, apanhou o casalinho num passeio romântico e foi aos fagotes ao amoroso, pregando-lhe umas pauladas valentes. Bach ripostou sacando de uma navalha, à moda de um fadista do Cais do Sodré, o caso ficou feio, uns passantes tiveram de os separar e a refrega foi discutida no conselho geral da escola de Mühlhausen com Gayersbach assumindo o papel de vítima – afirmou solenemente que ficara profundamente ofendido por J.S. lhe ter atirado à cara que era um «Zippel Fagottist», ou seja, numa tradução liberal, que tocava o instrumento com a delicadeza de um anfíbio. A sentença não foi agradável para Bach: sugeriram-lhe que se relacionasse mais cordialmente com os pupilos, evitasse insultos do género e, sobretudo, não esticasse a sua exigência musical ao ponto de diminuir aqueles que considerava abaixo do seu talento. Pode-se dizer que, perdendo na sala de audiências, acabou por ganhar no jogo da sedução.

Para além de gostarem de forma um pouco excessiva no nome Johann, os Bach não tinham nada contra contrair matrimónio com familiares. Pelo que João Bach e Maria Bach trocaram votos na igreja de Dornheim no dia 17 de Outubro de 1707.

Nos dez anos que se seguiram, Maria Barbara gerou e pariu a um ritmo assustador: Catharina Dorothea (28 Dezembro de 1908); Wilhelm Friedemann (22 de Novembro de 1710); Johann Christoph (23 de Fevereiro de 1713); Maria Sophia (23 de Fevereiro de 1713) – gémeos, claro está! -; Carl Philipp Emanuel (8 de Março de 1714); Johann Gottfried Bernhard (11 de Maio de 1715) e Leopold Augustus (15 de Novembro de 1718). Ufa! É do quilé!, como gostava de escrever o grande Assis Pacheco. Depois, um bocado subita e inesperadamente, deixou-se morrer e a expressão não é tão deslocada quanto isso. Rezam as crónicas, sobretudo um opúsculo intitulado simplesmente Kekrolog, assinado pelo quinto filho de ambos, Carl Philip Emmanuel, e por Johann Friedrich Agricola, também conhecido pela alcunha de Flavio Anicio Olibrio, seu amigo e aluno de João Sebastião, mais tarde compositor de reconhecidos méritos, que a morte Maria Barbara sucedeu num altura em que esta respirava saúde. O marido andava por fora, acompanhando o príncipe Leopold of Anhalt-Köthen, riquíssimo mecenas, numa visita a Carlsbad, e ficou profundamente chocado ao perceber, no regresso, que a esposa já tinha sido velada e enterrada. Causa de morte: desconhecida. Era o que se podia ler no atestado de óbito. Claro que ninguém levantou a hipótese de ter sido provocada por excesso de partos. Além dos sete filhos sobrevivos, ainda teve mais três que faleceram à nascença. Mas a maternidade era, no início de 1700, uma espécie do que se chamaria nos dias de hoje um work in progress, e muitas proles bem maiores medravam nas redondezas sem que as matronas sofressem fosse de que maleita fosse.

João Sebastião não esperou muito para substituir Maria Barbara. Entre o funeral da primeira mulher e a sua nova boda não decorreram mais de 17 meses. Como era um homem intimamente ligado ao meio musical, desta vez não cortejou uma prima e sim uma colega, Anna Magdalena Wilcke, uma soprano da corte do príncipe Anhalt-Cöthen, filha de Johann Caspar Wilcke, também ele soprano mas não de voz e sim de tocar instrumentos de sopro. E, assim sendo, ao som dos bimbalhar dos sinos, o nó atou-se no dia 3 de Dezembro de 1721. E a dança recomeçou.

 

Filhos e filhos e filhos…

Anna Magdalena, agora Bach, demonstrou uma capacidade formidável de aproveitamento dos momentos íntimos com o marido. Entre 1723 (de que terão eles estado à espera um ano e tal?) a 1742 deu ao mundo um ror de novos Bach: Christiana Sophia Henrietta (1723); Gottfried Heinrich (1724);

Christian Gottlieb (1725); Elisabeth Juliana Friederica (1726); Ernestus Andreas (1727); Regina Johanna (1728); Christiana Benedicta (1730)

Christiana Dorothea (1731); Johann Christoph Friedrich (1732); Johann August Abraham (1733); Johann Christian (1735); Johanna Carolina (1737) e Regina Susanna (1742). Como diriam os Monty Python em O Sentido da Vida, o J.S. não desperdiçava esperma. Teria encaixado como uma luva na cançoneta: «Every sperm is sacred/Every sperm is great/If a sperm is wasted/God gets quite irate».

Ejaculações à parte, vinham aí momentos complicados para a vida de João Sebastião e ter de alimentar tanta boca não o ajudava a manter a clareza de raciocínio. Mas trabalhava com bravura para ser um grande compositor – e foi um magnífico compositor!!! -, para ser um bom professor de música, de órgão sobretudo, e para ser um bom pai. A Senhora da Gadanha, infame e e encanzinada, levou-lhe dez do total de vinte filhos antes de atingirem a idade adulta. Quatro dos que se mantiveram caminhando sobre o Planeta, com maior ou menor dificuldade, seguiram a veia musical do pai, dos avós, de vários tio-avós e por aí fora num nunca mais acabar de Bach.

Ir à procura dessa descendência faz-nos tropeçar de imediato em Wilhelm Friedemann Bach, ainda por cima logo um que não era Johann, o que faz dele uma personagem ainda mais interessante. Wilhelm tinha dez anos quando a mãe, Maria Barbara, morreu e ficou profundamente marcado pelo desaparecimento misterioso da senhora Bach, por sinal duplamente Bach, como já vimos. Aluno do próprio pai, revelou habilidade para organista e chegou a ser um compositor reconhecido. Mas atrapalhava-se demais. Ou seja, era um fulano sem qualquer espécie de método ou de organização. Seguiu a família entre Weimar e Leipzig, onde João Sebastião trabalhou, até receber um convite para o posto de organista na igreja de Santa Sofia, em Dresden. A despeito do seu talento, desperdiçava muito tempo em conflitos estéreis, com colegas e com patrões. E a história da música nunca lhe perdoou pelo facto de ter herdado um fantástico legado de partituras assinadas pelo pai que tratou de vender por tuta e meia para fazer frente a dívidas ou de deixar ao desbarato por qualquer lugar no qual a sua alma alheada ia estacionando. Como castigo, algum deus menor que apreciava de sobremaneira as composições de João Sebastião, infernizou-lhe a velhice com uma pobreza digna de Job.

Não se sabe se foi carregado de ironia que Mozart disse um dia: «Bach é o pai e nós todos os seus filhos”. Seria o que faltava. Aceitemos de bom grado que a expressão é de retórica. Ou podemos seguir pelo caminho de um dos seus biógrafos que sustém a ideia de que o Bach de que falava Wolfgang Amadeus era, na realidade, Carl Phillip Emmanuel Bach, o filho de J.S. tido como o compositor que fez a transição derradeira do barroco para o clássico.

Carl Phillip nasceu 42 anos antes de Mozart e foi tão precoce quanto Wolfgang viria a ser. Rapazinho atilado, não apenas absorvia tudo o que conseguia sobre música, tendo o pai como professor, como utilizava o seu tempo livre em tarefas que pudessem contribuir para o orçamento caseiro.

Pode dizer-se sem grande margem de erro que Carl Phillip terá sido o mais brilhante dos Bach a seguir ao pai, e mesmo assim há quem contradiga essa hierarquia. Ficou conhecido como Bach de Berlim, algo perfeitamente natural se pensarmos na quantidade de Bach que, por essa altura, pululavam por toda a Alemanha, com exemplo concreto no seu irmão Wilhelm Friedemann que se tornou o Bach de Halle depois de ter sido aí professor.

Curiosamente, as lições musicais não o afastaram da rota que, a certa altura, decidiu tomar, e concluiu o curso de Direito. Depois arrependeu-se: escreveu uma carta ao Tribunal de Berlim, onde fora colocado, agradeceu a oportunidade, e tornou-se um membro da Real Orquestra de Berlim.

 

Bach por toda a parte

Já está mais do que na altura de trazer a esta prosa um João. Afinal Bach e João são nomes que se misturam com uma facilidade impressionante.

Comecemos por um outro músico de sucesso, Johann Christoph Friedrich Bach. Este ganhou o nome de Bückenburg Bach e era tão fértil que ainda muito jovem já tinha inundado igrejas e salas de concerto com sinfonias, oratórios, sonatas, coros litúrgicos e o diabo a quatro num produção tão febril como a do progenitor.

Contrariando a velha frase de Pittigrilli – «Mais do que inimigos, eram irmãos» -, os manos Bach mais do que irmãos eram amigos. E, com saudades do Bach de Londres, o Bach de Bückenburg tratou de se pôr a caminho de Inglaterra onde vivia outro João, Johann Christian Bach, um jovenzinho tímido que vivera com outro dos irmãos, Carl Phillip Emmanuel, após a morte do velho João Sebastião, era ele ainda um adolescente. Antes de atingir o estatuto que o levou a mudar-se para Londres e ser o compositor oficial do King’s Theatre, passara uns tempos em Milão e apaixonara-se por ópera. 

Na capital inglesa, Johann Christian chegou a um tal pico de fama que era solicitado por tudo quanto era gato pingado para fornecer opiniões sobre meninos que sonhavam com carreiras extraordinárias ou, se calhar, meninos que tinham pais que sonhavam com carreiras extraordinárias para eles. A tal ponto que até um fedelho de oito anos sentaram ao piano na sua frente à espera do seu parecer positivo. O Bach de Londres ficou espantado com a qualidade do garoto, mas também não é de admirar se dissermos que o cinco-réis de gente era nem mais nem menos do que Wolfgang Amadeus. Mozart, de patronímico.

Johann Christian, como quase todos os Bach, acabou por se ver envolvido em tranquibérnias extremamente desagradáveis, todas elas com o dinheiro como pano de fundo. O seu estilo musical perdeu popularidade e, com isso, mercado. A sua empregada andou anos a fio a forjar faturas o que o deixou carregado de dívidas perante os fornecedores locais. Morreu praticamente na miséria, mas levou consigo para a cova o eterno agradecimento da rainha Charlotte of Mecklenburg-Strelitz, mulher de Jorge III de Inglaterra, que lhe prestou exéquias devidas a um Mestre da Corte. Ter-lhe-á feito pouco proveito, mas a uma rainha nada se nega, ainda por cima depois de morto. 

Quando Johann Christian desapareceu do convívio dos mais próximos já tinham decorrido trinta e dois anos sobre o funeral do patriarca. A fase derradeira de João Sebastião não foram fáceis, algo que parecia quase uma maldição familiar. Quando assistiu ao casamento da sua filha Elisabeth Juliane Friederica com um dos seus alunos favoritos, Johann Christoph Altnickol, em Janeiro de 1749, tinha a saúde muito depauperada. Altnickol viria a travar-se de razões com um dos seus cunhados, Gottfried Heinrich Bach, por causa de diversos manuscritos deixados pelo sogro, a ponto de ter tentado que uma instituição o desse como mentalmente inapto, esforço completamente baldado, embora o desgraçado Gottfried fosse na verdade um ser meio demente, dado a comportamentos absurdos que os irmãos sempre tentaram desvalorizar. Carl Phillip Emmanuel fechou o assunto em questão com uma frase tão notável como prevaricadora da verdade: «Ele é um enorme génio que não conseguiu desenvolver-se». Os conflitos sobre o abundante material deixado por J.S. estender-se-iam por décadas .É um dos custos a pagar por se ser ser fecundo, tanto em obra como em descendentes.

No mês de Junho seguinte, um tipo mesquinho, o conde Heinrich von Brühl, diplomata e militar famoso por ter uma incomensurável coleção de relógios, decidiu escrever uma carta ao burgomestre de Leipzig aconselhando-o a forçar o director musical da orquestra da cidade, Johann Gottlob Harrer, a substituir o seu maestro por estar praticamente morto. O praticamente morto era, como está bem de ver, João Sebastião que, caminhava a passos largos para passar à situação de cadáver. Seja como for, o termo praticamente feriu-lhe a sensibilidade ainda mais do que o apenso morto. Vendo bem, e Bach não via realmente nada bem, era de uma desconsideração infame para um artista de tamanha redundância. E contribuiu para arrasar o que lhe restava de resistências.

O pai Bach começara a cegar por causa das cataratas. Um trapalhão chamado John Taylor, espécie de médico ambulante, convenceu-o a fazer uma cirurgia que envolvia a penetração dos olhos por um instrumento fino e afiado mas não garantia coisa alguma. J.S., desesperado como estava, não contrariou a besta de 128 patas e pagou caro por isso, e não é somente no aspeto financeiro de que falamos. Depois de o deixar completamente invisual, Taylor massacrou-lhe o resto da existência com um soro ocular feito de mercúrio, sangue de pombo e açúcar em pó que devia ser aspergido de seis em seis horas. Não contente com os sarilhos que provocara no moribundo João Sebastião, o tunante voltou à estrada com a sua maleta dos milagres. Instalado, finalmente, em Londres, com consultório especializado em oftalmologia, repetiu a cirurgia em várias vítimas. Uma delas foi o compositor Georg Friedrich Händel que, não surpreendentemente, ficou absolutamente cego. Há que creditar ao salafrário duas cegueiras imponentes.

Passou-se tempo suficiente, entretanto, para perceber que o charlatão inglês contribuiu numa dose muito razoável para apressar a morte de Bach. As complicações foram de tal ordem infecciosas que no dia 28 de Julho exalou o seu último suspiro, muito provavelmente de alívio. O seu túmulo na igreja de St. John, em Leipzig, era tão simples e humilde que, em 1894, foi tomada a decisão de o transladar para uma campa mais digna, na também mais digna igreja de St. Thomas. Wilhelm His comandou um grupo responsável por desenterrar os restos mortais do compositor e a sua surpresa foi a surpresa de muita gente: «Os ossos estavam todos misturados, desenculatrados, misturados com pedaços de madeira de outros caixões, e só foi possível reconhecer-lhe o crânio». Toda a crença que colocou nas suas composições, que ele afirmava serem feitas em nome de Jesus e para glória de Deus de pouco lhe serviu no final da vida. Torturado por um esculápio de pacotilha ainda andou às voltas na tumba.

Daria mais meia dúzia de voltas debaixo dos sete palmos de terra se soubesse do triste fim de alguns dos seu filhos, como por exemplo a mais nova, Regina Suzanna Bach, que a fome ajudou a sucumbir. Ainda assim, nunca a falta de comida lhe quebrou o orgulho de usar o nome Bach. E de ser amiga de outro dos inconfundíveis, Ludwig van Beethoven, o Divino Surdo, que ao saber da sua miséria tentou enviar-lhe como oferta o original da sua 3.ª Sinfonia, a mesma que dedicara a Napoleão e rasgara a dedicatória no dia em que este se autointitulou imperador. A Heróica não chegou a tempo de ter valido, ao menos, um derradeiro prato de sopa…