Esta será uma Páscoa como nenhuma outra, de Portugal ao Vaticano, de Madrid a Jerusalém, passando pela América Latina até às Filipinas. Na história recente, nunca houve um encerramento tão completo dos serviços religiosos como nesta guerra contra o inimigo invisível, o novo coronavírus – nem sequer durante a Segunda Guerra Mundial.
Será uma Páscoa em casa, online, sem missas presenciais nem procissões: para os católicos, que dão tanta ênfase ao aspeto comunitário da religião, não é fácil. «Não estando reunida a assembleia há algo que fica empobrecido», admite ao SOL José Miguel Pereira, reitor do Seminário Maior de Cristo, nos Olivais.
«Mas o aspeto comunitário não se esgota apenas em estarmos reunidos proximamente, do ponto de vista físico», considera o padre, para quem o desafio da pandemia apresenta oportunidades: provocou uma certa criatividade «para oferecer acompanhamento a quem não pode vir à celebração, os que estão doentes, reclusos, etc», por telefone ou videochamada.
Entretanto, muitas paróquias já transmitem missas em direto, seja na televisão, rádio, ou plataformas como o Facebook e Youtube. «Quando estou a celebrar estou a imaginar as pessoas atrás do computador», explicou à Antena 1 o padre Nuno Rosário Fernandes, da paróquia de Nossa Senhora do Amparo, em Benfica.
Até o santuário de Fátima «vai viver estes dias num clima de recolhimento», lê-se num comunicado. Sem as multidões de peregrinos, «sobretudo espanhóis que, dada a proximidade geográfica, têm por tradição visitar Portugal nesta quadra festiva». As muitas lojas, hotéis e restaurantes da região, que retiram cerca de 80% do seu rendimento do turismo religioso, já se ressentem. «O encerramento de empresas e despedimentos são inevitáveis», lamentou à Renascença Purificação Reis, presidente da Associação Empresarial Ourém-Fátima (ACISO).
Contudo, não são só as cerimónias religiosas a serem afetadas esta Páscoa: os encontros de familiares, partilhados por crentes e não crentes, estão fortemente condicionados. O Governo português já proibiu a circulação entre conselhos, entre 9 e 13 de abril, exceto por motivos profissionais, e pediu aos emigrantes que não venham a Portugal.
Milhares costumam regressar nesta altura, «para ver os seus e as suas famílias», reconheceu o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. «Isso este ano não pode acontecer», apelou, num vídeo no Twitter, explicando que «se o fizessem teriam de ficar confinados, isolados», devido à pandemia.
Flagelação e carvão-do-milho
Entre as mais conhecidas e polémicas tradições de Páscoa está a autoflagelação ritual, nas Filipinas, sobretudo na província de Pampanga, em Luzón central, mas também na capital, Manila. Neste país, profundamente católico, na sexta-feira de Páscoa corre sangue nas ruas, quando multidões se chicoteiam, usando bambus atados por cordas – alguns chegam mesmo a ser crucificados, imitando a paixão de Cristo.
«Este é um voto religioso. Farei isto todos os anos enquanto viver», prometeu o ano passado Resty David, um camionista de 38 anos que se flagela há décadas. em declarações à AFP. A Igreja Católica tem recusado apoiar este ritual, e face à pandemia de coronavírus reforçou os seu apelos.
«Alimentar os famintos e dar caridade aos pobres, servir os doentes como fazem os nossos médicos na linha da frente, são a melhor aproximação do que Jesus fez no Calvário», garantiu um representante dos bispos filipinos, Jerome Secillano, citado pelo Manila Bulletin. «A nossa vida na Terra já é uma vida de sofrimento. Eles já não estão a sofrer quando não têm nada que comer, não têm trabalho?», questionou.
A referência não é por acaso: desde que foram impostas duras medidas de isolamento social no país, com recolher obrigatório, têm eclodido protestos devido à escassez de alimentos – muitos não terão o que comer na Páscoa. Autoridades locais oferecem sementes a famílias, para que plantem «jardins de sobrevivência», enquanto outros são forçados a comer carvão-do-milho, um fungo que cresce nas maçarocas, frito, misturado com melão amargo e tomate. «É uma comida famosa no México, mas nós, no campo, consideramo-lo uma peste», explicou Elton Caranay, um especialista em permacultura, ao Philippine Daily Inquirer.
Amizades improváveis
Na América Latina, tradicionalmente católica, mas com um número crescente de denominações protestantes, a Igreja tenta adaptar-se à covid-19. Este ano, em Iztapalapa, no México, a sua procissão e representação da crucificação não atrairá os cerca de dois milhões de visitantes habituais: mesmo assim, deverão participar umas quatro mil pessoas, perante as câmaras de televisão.
Já a bênção pascoal em Guayaquil, no Equador, será dada de helicóptero: um padre vai sobrevoar a cidade, esta sexta-feira, munido de um sacrário com a hóstia consagrada. No entanto, talvez isto nem seja o mais surpreendente. Em tempos de pandemia, a Igreja Católica encontrou um aliado pouco habitual em Cuba, o Partido Comunista. Pela primeira vez, nos mais de 60 anos desde a Revolução, será permitido que a missa de Páscoa passe nas rádios e televisões estatais.
Peregrinação à distância
Nem Jerusalém, santa para cristãos, judeus e muçulmanos, escapou às limitações. Esperava-se que a cidade atraísse uns 400 mil visitantes nesta altura, mas tudo mudou com a pandemia: as fronteiras de Israel fecharam, os turistas e peregrinos proibidos de visitar a Cidade Velha. Foi imposto um recolher obrigatório, entre as 3 e as 7h da tarde, durante o Pessach, a Páscoa judaica, que ocorre entre 8 e 16 de abril.
«Este ano todos os festivais fecharam, mas ainda podemos mostrar a beleza de Jerusalém ao mundo», garantiu ao New York Times Eilat Lieber, diretora do Museu Torre de David. Por sorte, já antes da pandemia tinha começado a trabalhar numa experiência de realidade virtual, chamada ‘The Holy City’, acessível gratuitamente na internet.
É só colocar um capacete de realidade virtual – estão disponíveis comercialmente, por algumas centenas de euros – e passear pelas ruas medievais da cidade. Pode assistir às cerimónias na Igreja do Santo Sepulcro, às orações de Ramadão na mesquita de al-Aqsa e às bênçãos de Pessach, no Muro das Lamentações.
Horror e esperança
Em Espanha e Itália, entre os países mais afetados pela pandemia, choram-se os mortos e as ruas estão vazias. A praça do Vaticano, geralmente cheia de peregrinos, estará vazia enquanto o Papa Francisco estende a sua benção Urbi et Orbi, à cidade e ao mundo. Já os santos, estão «na porta do lado», garantiu recentemente o Papa. «Doutores, voluntários, irmãs religiosas, padres, lojistas, todos fazem o seu dever para que a sociedade continue a funcionar», lembrou.
«Desde as primeiras celebrações, que os cristãos faziam, perseguidos, nunca houve uma Semana Santa tão verdadeira», considera Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia na Universidade de Coimbra. «Depois, as pessoas entretinham-se, com grandes procissões, muitas vezes com ostentação», mas não este ano. No sábado de Páscoa, os cristãos vivem o horror da morte de Cristo, à espera da esperança de domingo. Como agora, garante o sacerdote.