A gripe de Hong-Kong fez mais de um milhão de mortos em 1968. Mas, nessa altura não se declarou o estado de emergência, nem se fechou a economia, nem sequer se guardou memória dela. O que é que mudou em 50 anos?
É certo que o ano de 1968 ficou conhecido como ‘O ano que não terminou’, marcado pelo assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, a Guerra do Vietname, a revolução hippie e a ideologia de género dos baby boomers, a escolha de Nixon, o Maio de 68 e a Primavera de Praga, o descontrolo na Revolução Cultural da China e o Livro Vermelho de Mao e até, pela queda de Oliveira Salazar.
«Quando as pessoas não vêm o crime, mas vêm o castigo, vão revoltar-se» (Karl Marx) parece ter sido a máxima daquele ano interminável e do advento de duas revoluções políticas (a última vaga liberalizadora, que começa com a Revolução do 25 de Abril em Portugal e termina com a Primavera Árabe, que inclui o fim das ditaduras militares e a queda do Muro de Berlim, o colapso da URSS e do Pacto de Varsóvia e o confronto no seio do islamismo) e das cinco revoluções tecnológicas que vão marcar os 50 anos seguintes – o choque petrolífero de 1973, a revolução bancária de 1981, a revolução digital de 1982, a revolução da internet de 1995 e a 4.ª revolução Industrial, com a inteligência artificial (robotização, data base e machine learning).
Uma mudança tão profunda no quadro político (generalização da democracia), no quadro económico (globalização e ascensão económica da China, com o modelo ‘chinamérica’, a agricultura geneticamente modificada e a impressão de moeda para combater ‘crashs’ e garantir crescimento) no quadro social (explosão demográfica e redução da pobreza, com o acesso de mais de 2/3 da humanidade à condição de classe média), no quadro cultural (alfabetização generalizada e abertura das universidades) e no quadro da saúde pública (com o saneamento básico, a vacinação e a descodificação do genoma humano) teria necessariamente que conduzir a uma nova forma de humanismo, que explica hoje a histeria geral com um vírus insignificante (covid-19), que, em 97% dos casos, um ben-u-ron de seis-em-seis-horas, máscaras e um pouco de sol resolveriam.
Em pouco mais cinquenta anos, todas as grandes instituições da nossa ordem social, muitas delas vindas do Império Romano, colapsaram – desde a família, com o divórcio e o casamento gay, à Igreja Católica, com a doutrina do Vaticano II, ao Exército, com o fim do serviço militar obrigatório, até ao direito à vida, com o aborto e a eutanásia.
Sem as referências éticas e institucionais que, apesar de tudo, integraram, sucessivamente, Cristianismo, Renascimento e Luzes, o Ocidente – e com ele, o resto do mundo rico que faz parte da Ordem Internacional – reagiu ao coronavírus de 2020 com uma original forma de entender o Homem, com um ‘novo humanismo’.
Da China totalitária à democrática Europa, ninguém se importou com a realização da distopia. Em Portugal, até vimos insuspeitos políticos a defenderem apps para controlar os movimentos e as relações privadas e pessoais.
Poucos, muitos poucos, se arrogaram no dever moral de colocar em causa medidas absolutamente inconstitucionais e violadoras dos diretos humanos que, por todo o lado, os Estados, seguindo um grupo de burocratas da saúde e o discurso ideológico antieconómico da crise sanitária, impuseram à humanidade.
O medo do vírus, ainda esta semana, afetava 87% dos portugueses, segundo uma sondagem da Católica, divulgada pela RTP.
O que mudou em 50 anos? O que mudou foi o respeito que a vida humana hoje nos merece, acima de todas as outras coisas. Todas as revoluções por que passámos colocaram o valor da vida e, portanto, as questões de saúde, acima das questões económicas e da sobrevivência das instituições.
Já havia traços desta mudança de valores – e dos valores das coisas – na revolução ecológica e no discurso das mudanças climáticas. A ideologia da sustentabilidade já anunciava um novo lugar ao Homem: um Homem eterno, sobrevivente a todas as catástrofes, qual Harry Potter a vencer Voldemort. Um Homem rico incompatível com os cortes orçamentais na Saúde.
É esta centralidade da vida que, de Beijing a Washington, mudou em 50 anos e que os políticos integraram na nova narrativa ideológica, ao lado da transparência, da sustentabilidade ecológica e da transição digital. Em 1968, não se dava à vida o valor de hoje. Entretanto, biliões de pessoas começam a acreditar no direito à imortalidade – no homem-deus. A morte estava extinta. Já há muito tinha saído da casa das famílias, para os hospitais. Agora, parecia ter saído, de vez, da vida dos homens. Daí a angústia e o pânico com o covid-19. Sobretudo nos jovens.
É, afinal, uma espécie do humanismo mágico que, aparentemente, veio para ficar, sobretudo agora que começa a ficar claro que vamos empobrecer e que não vamos ter crescimento económico nos próximos anos (com as dívidas públicas, as guerras comerciais e o colapso do turismo).