A cura está ligada ao tempo e às vezes também às circunstâncias». Esta frase, atribuída a Hipócrates, pode ser entendida como uma síntese da situação extraordinária que nos encontramos a viver e, também, do futuro que nos espera. Fomos confrontados com uma pandemia que ninguém poderia esperar e para a qual ninguém estava preparado. Falar em sucesso será sempre manifestamente excessivo para as vidas humanas que já perdemos e para as sequelas humanas, físicas, psicológicas, culturais, económicas e sociais que a covid-19 deixará nos doentes, nas famílias, em todos nós. Mas cabe-nos a todos – do poder político, aos profissionais de saúde e à sociedade civil – trabalhar as circunstâncias para minimizar o impacto imediato e futuro do surto, sobretudo nos doentes não-covid e na sociedade civil. Estamos a falar do impacto na saúde e na economia, com um aumento muito significativo das desigualdades sociais e das suas consequências dramáticas, que podem conduzir, em última análise, a um aumento significativo da morbilidade e da mortalidade.
Esta crise chegou-nos numa altura em que gastávamos, na saúde, menos de metade da média da União Europeia per capita, numa diferença de 1297 euros para 2609 euros, em paridade de poder de compra.
Esta crise chegou-nos numa altura em que os médicos já faziam mais de 6 milhões de horas extraordinárias por ano e em que, mesmo assim, o número de inscritos em listas de espera para cirurgia tinha passado de perto de 192 mil pessoas em 2016, para mais de 245 mil pessoas em 2019, com 30% das consultas a serem feitas fora do prazo, mesmo em situações prioritárias ou muito prioritárias.
Esta crise chegou-nos quando as mãos não chegavam para tudo e quando poucos ouviam os nossos gritos de alerta.
O SNS, apesar de frágil e debilitado, soube responder e adaptar-se à pandemia, independentemente de falhas pontuais ou de situações mais graves que ainda perduram, como a falta de equipamentos de proteção individual adequados para proteger a vida dos doentes, evitando que quem cuida deles adoeça. Mas ficou à vista de todos que o grande ventilador do nosso SNS e do país são, como sempre foram, os médicos, os enfermeiros, os farmacêuticos, os assistentes operacionais, os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, os secretários clínicos, entre muitos outros profissionais de saúde. São eles que têm estado na linha da frente e é neles que, mesmo com máscaras que impedem de reconhecer rostos, a sociedade civil tem reconhecido a competência técnica, a solidariedade e a humanidade. São as caras deles que vemos desgastadas e agastadas, mas sem desistir – mesmo estando há várias semanas longe de casa para protegerem as famílias.
Este esforço está a permitir responder aos nossos doentes em condições extraordinariamente difíceis. Mas o foco político na covid-19 e o facto de não se ter seguido a recomendação da Ordem dos Médicos de ter hospitais e/ou áreas bem definidas dedicados à pandemia, também trouxe outros problemas sérios. Muitos cidadãos com doenças graves ou urgentes, que não deviam ver a sua ida à urgência adiada, ou os exames, consultas e cirurgias desmarcados, não estão, em muitos casos, a ter a resposta adequada, seja pelo medo que têm em recorrer aos serviços de saúde por causa do novo coronavírus, seja pela necessidade que o SNS teve de concentrar os recursos na resposta à covid-19. Os números da mortalidade em março e da quebra na ida às urgências hospitalares denunciam que há uma franja da população que não entra nas estatísticas, mas que está a ficar sem cuidados de saúde em tempo adequado. O que não é algo difícil de antecipar, se tivermos em conta a pandemia e as listas de espera que já existiam.
E depois da covid-19? É das perguntas que mais ouvimos e fazemos. Como diz a música de Paulo de Carvalho, depois do adeus (à pandemia) como ficaremos? A (nova) normalidade não será a que conhecíamos, por todas as transformações económicas, políticas e sociais que o surto acarreta. Mas ainda estamos a tempo de evitar que nos venhamos a questionar o que fazemos aqui, quem nos abandonou e de quem nos esquecemos. Ninguém pode ficar para trás. É urgente criar uma task-force para preparar o sistema para continuar a responder aos doentes não covid, é preciso ter uma visão global e integrada que não ignore o setor privado e social. Precisamos de todos, ainda que esta seja definitivamente a altura em que profissionais e doentes estão mais do que nunca unidos para mostrar ao País como um todo que precisamos de reforçar e valorizar o SNS e o Estado Social.
O Milagre de Portugal nesta pandemia é e vai continuar a ser os profissionais de saúde e todos aqueles que cuidam de nós, bombeiros, forças de segurança, autoridades judiciárias, militares, cuidadores… E os portugueses sabem que contam sempre connosco. Mas o Milagre de Portugal são também os portugueses, a sociedade civil, que souberam interpretar a gravidade da situação e antecipar as medidas necessárias para responder de forma exemplar à crise. E os exemplos são muitos. Muito obrigado. Bem hajam.
por Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos