É a maior pandemia desde a gripe espanhola, a maior contração económica desde a Grande Depressão, a maior queda de sempre no preço do petróleo e as maiores intervenções da História dos Bancos Centrais. Tudo temperado com o medo de uma doença, que nos nossos pesadelos até seria mais devastadora, e com as emoções à flor da pele, naturais numa sociedade em confinamento. Howard Marks, da Oaktree, escrevia que, como nunca houve nada parecido, ninguém consegue prever o que vai acontecer. Ou, como me dizia um experiente empresário: «Entre ver os economistas na televisão ou ir falar com um bruxo, se calhar sai mais barato não perder tempo nem dinheiro». Mesmo assim, arrisco algumas perspetivas.
Quanto maior a destruição de empregos, de empresas e de cadeias logísticas, mais lenta será a recuperação e maior a probabilidade de a crise económica se transformar numa crise financeira. Por isso o ‘tempo’ e os ‘danos’ têm um papel central. Estamos numa fase delicada porque sabemos que o confinamento funciona, mas há a noção que danifica a economia e que virá aí uma segunda vaga covid-19… a não ser que surja uma vacina ou uma terapêutica tremendamente eficaz. Portanto, ainda poderemos passar por novos períodos de confinamento ou de muitas restrições. O mundo vai habituar-se a viver com o vírus, mas a abertura será gerida em função da capacidade das Unidades de Cuidados Intensivos.
A tentativa de evitar falências provocará um épico acumular de dívida e colocar em causa um dos axiomas das economias avançadas: a alocação de recursos só funciona de forma eficiente perante um saudável receio de perdas. O acumular de dívida obrigará à sua monetização, ou seja, os bancos centrais criarão moeda em ‘roda-livre’, colocando em risco os próprios sistemas monetários. A Reserva Federal dos EUA disse que o seu «poder de fogo não tem limite», o que só será possível com um fortíssimo braço do Estado a legitimar o processo. Os receios de contágio da covid-19 e a vontade de controlar e cobrar impostos poderão acelerar a desmaterialização completa do dinheiro em muitas geografias (fim das notas e moedas). Será mais um dos ângulos pelos quais a liberdade individual será suprimida. Aliás, a questão monetária poderá ser a essencial da próxima década, com os países de ‘moeda forte’ a serem particularmente beneficiados. Às nações periféricas pouco importará ter um Banco Central que também monetize a dívida se a nível internacional a sua moeda tiver pouca aceitação. Este facto poderá ajudar à criação de alternativas monetárias.
A epidemia já está a mostrar a face mais musculada dos Estados, democráticos ou não, e essa é uma tendência que veio para ficar. Vamos ter mais controlos individuais, utilizando a tecnologia e não só, pelo que as distopias orwellianas poderão pecar por defeito. Vêm aí mais controlo, mais opressão, mais impostos, mais discricionariedade, mais Estado.
Algumas das grandes organizações internacionais já estão em decadência. Com o menor alinhamento de interesses entre as maiores potências, FMI, ONU, OMS, OMC, G20 e outras tenderão a ser menos relevantes e serem, em si mesmas, focos de tensão. Teremos saudades da ‘Guerra Comercial’ e, como já se percebeu, a União Europeia não está imune a riscos de desagregação ou, pelo menos, de perda de influência.
Estamos perante as tais semanas que valem por décadas. Como ouvi esta semana, «o futuro não é mais o que era». O mundo já mudou. Mas sejamos otimistas, porque continuará a haver oportunidades, sorrisos, sucesso, felicidade e também todos os seus opostos, como tem de ser.
(*) Paul Valéry, citado por Luis Calleja
por Filipe Garcia
Economista da IMF, Informação de Mercados Financeiros