Um homem, um qualquer homem, é uma unidade e continuidade complexa, e tanto mais complexa quanto mais faz da vida uma aventura de assumido risco. Para bem evocar um homem há, pois, que evocar, sucintamente que seja, essa sua totalidade.
Com este preâmbulo, pretendo dizer que não posso, como desejava, escrever sobre Noronha da Costa, falecido no passado dia 9, apenas enquanto amigo, que muito prezava e admirava, quer pelos seus muitos talentos de espírito, quer, também, pelas suas invejáveis qualidades de temperamento, quer, ainda, pela sua personalidade forte e frontal.
Assim, antes de tal fazer, sinto obrigação de recordar que Noronha da Costa foi um arquitecto, cineasta, fotógrafo e, sobretudo, pintor de rara, distinta e distintiva qualidade. Pintor com «alicerces firmes na tradição da pintura; a sua sensibilidade era poética em vez de crítica» (I, 16); pintor capaz de, harmoniosa e poeticamente ainda, conjugar a «tensão entre o real e o iluminismo» (I, 16), que, aliás, anima distintivamente a sua obra. Segundo Bernardo Pinto de Almeida, Noronha da Costa consegue, na sua pintura, «retirar todo o conteúdo representativo à pintura, sem todavia ‘cair’ no que seria o domínio da abstracção pura» (II, 3).
No final dos anos anos 1960, princípios de 70, era identificado internacionalmente como o jovem pintor português que, com a sua experiência em múltiplas disciplinas das artes visuais (pintura, cinema e arquitectura), e com o seu «interesse pela tecnologia e pelos seus processos» (I, 16), desenvolveu «um estilo de pintura em consonância com o da vanguarda internacional» (I, 16). E era ainda descrito «como o jovem artista português cujas obras podiam ser exportadas para o exterior» (II, 8).
A tal comprovar, recordo alguns marcos mais significativos do seu ainda então jovem percurso artístico. Em 1969, é escolhido para representar Portugal na X Bienal de São Paulo; em 1970, participa na Bienal de Veneza (que constitui «uma montra para os melhores artistas contemporâneos do mundo» [II, 8]); em 1972, realiza exposições individuais na Galeria Zen e na Galeria 111; em 1973, realiza uma grande exposição em Munique, na Galeria Christoph Dürr, e em Paris, no Centro de Cultura Portuguesa; em 1975, o seu filme À procura do espaço – Pátria perdida foi exibido na Cinemateca de Paris; em 1999, é-lhe atribuído o Prémio Europeu de Pintura pelo Fórum Europeu de Cultura da Fundação Europeia da Cultura Pro Europa.
Na verdade, segundo a credenciada crítica de pintura Barbara Rose, Noronha da Costa «aponta para o futuro de uma arte portuguesa que é tão autóctone como é universal» e que tem nele «um dos principais pioneiros» (I, 23).
Eu próprio tive ocasião de testemunhar o apreço internacional por Noronha da Costa aquando da minha visita oficial, enquanto Presidente da República Portuguesa, à Grã-Bretanha, em 1978, em que procurei, recorrendo à via diplomática, saber se seria adequado oferecer à Rainha, como presente de Estado, um quadro de um pintor português (procurava-se, assim, valorizar a cultura portuguesa no estrangeiro); e, se a Grã-Bretanha reconhecesse adequado e oportuno fazer aquela oferta, se seria possível que a Rainha indicasse o seu (ou seus) artistas predilectos. Isabel II, como seria de esperar pelo seu estatuto e elegância de atitude, informou que receberia com agrado qualquer obra escolhida pelo Presidente da República português. Pelas vias diplomáticas, tentou então saber-se quais os pintores portugueses que a Rainha conhecia e apreciava. Foram indicados vários artistas e, entre eles, Noronha da Costa. No final, dado o prestígio internacional deste último, resolveu oferecer-se um trabalho seu à Rainha.
Cumprido, sinteticamente, o meu propósito preambular, poderei debruçar-me agora, sucintamente também, sobre a minha descoberta do homem, do artista e do amigo Noronha da Costa.
Era um conversador hábil e erudito, que prendia o interlocutor com a sua cultura, entusiasmo, simplicidade e patriotismo, também. Mostrava perseguir, com competência, empenho e autocrítica, um propósito artístico e poeticamente inovador. Disponível e atento se mostrava sempre, com cuidada atenção, até para discutir obras suas.
Com o tempo, estabelecemos uma sólida, sã e gratificante amizade. Acompanhámo-lo, eu e minha mulher, nos seus bons momentos, de artista de consagrado mérito e, também, nos seus momentos mais nefastos, em especial naquele em que um acidente lhe roubou a sua primeira mulher, Nica.
Creio que representaria justa homenagem, que muito poderia contribuir para a divulgação da nossa cultura, que, no Estoril (onde tinha o seu ateliê), fosse constituído um Centro Artístico Noronha da Costa, com uma exposição permanente, e também com obras cedidas temporariamente por instituições e particulares detentores de trabalhos seus.
Todos os dias, com nostalgia e agrado, revejo Noronha da Costa através de uma bela pintura sua colocada no meu gabinete, à frente da minha mesa de trabalho, sobre o nosso mar, o mar português.
Ele é para mim um amigo, que a minha memória olhará com nostalgia, seguramente; mas, certamente também, com gratidão e orgulho.
(I) ROSE, Barbara – Noronha da Costa. A Transformação da Imagem. Ed. CAM Gerardo Rueda – Câmara Municipal de Matosinhos. 2011
(II) ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Algumas reflexões críticas a propósito da obra de Luís Noronha da Costa. In Noronha da Costa, Ed. Câmara Municipal de Oeiras, 2013
por António Ramalho Eanes