O papel do indivíduo na História não é de se descurar, mas também não é de se endeusar, e o senador socialista democrático estava ciente desta máxima, que era um dos seus slogans: «Eu, não. Nós!». Bernie Sanders foi o responsável por pôr a palavra socialismo nas bocas do sistema político norte-americano, mas a sua ascensão não se deveu apenas às suas consistentes e coerentes habilidades políticas. Não foi um mero acidente, mas o seu papel, e o daqueles que o rodeiam, foi capaz de moldar e transformar o debate político dos últimos cinco anos, num país onde as ideias e alternativas políticas escasseiam há décadas, por variadas razões, e especialmente em matéria de questões económicas. Visto como um radical de esquerda nos EUA, o seu registo é marcado pelo pragmatismo. Afastou-se agora da corrida à presidência e já declarou o apoio a Joe Biden, mas o sprint dos últimos meses deixa um legado bem firmado.
Bernie Sanders exerceu grande parte das suas funções políticas na obscuridade. E, embora fosse senador há quase uma década, após apresentar a sua primeira candidatura para a nomeação presidencial, em 2015, viajou meteoricamente para os holofotes da política dos EUA, tornando-se um dos políticos mais conhecidos do país e do mundo. Em março de 2015, segundo uma sondagem da Gallup, 76% dos norte-americanos nunca tinham ouvido falar do candidato ou não tinham qualquer opinião sobre Sanders. Até o anúncio da candidatura foi insólito: numa vazia National Hall, a gesticular muito, como lhe é próprio, e com o vento a abanar-lhe o cabelo. No final de 2016, era um dos políticos mais famosos dos EUA, com taxas de aprovação maiores do que Hillary Clinton e Donald Trump.
Uma viagem que não se deveu apenas à sua habilidade retórica e à constante repetição dos ataques contra Wall Street, centro mundial da finança; contra as seguradoras; as farmacêuticas; a indústria militar; e os apelos por um sistema de saúde público e gerido pelo Governo – além do imposto por Barack Obama, retirando as seguradoras do menu. Os seus apelos e propostas ressoaram nos ouvidos dos norte-americanos. Uma mensagem bem sucedida que acabou por ser um produto trazido da Guerra do Iraque, da Grande Depressão de 2008, da convulsão social que daí veio e que culminou no movimento de 2011 Occupy Wall Street – Nós somos os 99%, que Sanders aproveitou nas suas campanhas – e das décadas de estagnação salarial impostas ao trabalhadores do país. Neste último ponto, não era apenas uma perceção, a desigualdade já não era tão alta em quase 100 anos: entre 1979 e 2007 os 1% mais ricos viram a sua riqueza aumentar 275% . Para os restantes, os salários cresceram a valores inferiores aos da inflação. E para os 90% do fim da pirâmide a perda de salário, em média, resultou em menos 900 dólares anuais.
Agora, o homem
Comparavelmente ao seu exercício em cargos públicos, a vida política de Sanders começou na obscuridade, nas remanescências do moribundo Partido Socialista da América. Na sua vida estudantil, nas fileiras da célula do partido na Universidade, Sanders chegou a uma conclusão que nunca mais abandonaria: que os ricos não estão moralmente confusos mas que, ao invés, tinham, conscientemente, o interesse de investir na exploração dos outros. Que o poder tinha que lhes ser tirado pela força, ou nada mudaria, segundo o The Socialist Manifesto: The Case for Radical Politics in an Era of Extreme Inequality, de Bhaskar Sunkara.
Crescendo na comunidade judaica de Brooklyn, filho de pai emigrante judeu polaco que fugiu da II Guerra Mundial, foi realizador de documentários para depois se mudar para o Vermont durante a guerra do Vietname. Concorreu a senador e governador do Vermont na década de 1970 pelo socialista União da Liberdade. Elevou-se à escala nacional por destronar o longo presidente da câmara de Burlington, Vermont, em 1981. Foi aí quando um repórter lhe perguntou como se definia. A resposta :«Um socialista democrático». Mas desengane-se quem pense que Sanders tornou Burlington num pequeno ilhéu cubano: queria resolver os problemas mais prementes da cidade e era capaz de cooperar com os líderes empresariais. E alguns anos depois foi considerado um dos melhores presidentes de câmara dos EUA.
Percorreu todo um caminho improvável e contra todas as amarras vigentes no sistema político norte-americano – criou um exército de voluntários como nunca se tinha visto para lutar pela sua campanha e angariou fundos sem nunca receber doações milionárias. Ele próprio ainda se surpreende. «Tendo em conta de ter vindo de onde venho», disse a uma jornalista do New York Times. «Pela primeira vez que concorri a um cargo ganhei 2% do voto, e na vez seguinte, 4%, depois 6% – a ideia, de acordo com algumas sondagens, de que estou a liderar as primárias democráticas para Presidente dos Estados Unidos, é um bocado estranha? É.»
É reconhecido por todos que o establishment democrata tinha pavor de ser Sanders o eleito. Mas o senador do Vermont tinha algumas fraquezas: o eleitorado afro-americano. Num golpe perfeitamente executado, todos os candidatos que ainda se encontravam na corrida desistiram no mesmo dia e realinharam-se à volta de Joe Biden na véspera da Super Terça-Feira: e o voto afro-americano deslocou-se em força para Biden. A partir daí, a derrota tornava-se cada vez mais uma realidade, principalmente pela falta de apoio do voto negro. «Ouça, o que estamos a tentar fazer é tomar todo o establishment político», disse à jornalista, antes de saltar para um comício. «Estamos a enfrentar todo o establishment empresarial, todo o establishment mediático», continuou. «Há um ano, alguém pensaria que uma coligação de base estivesse onde estamos hoje, a uns pontos do candidato do establishment? Essa é a verdadeira questão. Estamos a ir contra toda a gente! É algo que nunca foi feito na História Americana!». E, antes de entrar para o palco, virou-se novamente para a repórter e exclamou: «Percebe o que estou a dizer? É como dizer: sabe, ‘estamos surpreendidos que não derrotou o campeão mundial dos pesos pesados!».
Não se tornou o campeão dos pesos pesados, mas conseguiu deslocar o partido à sua esquerda, quando nunca tinha sido membro do Partido Democrata. Muitos candidatos adotaram a sua estratégia e políticas. E melhor: tornou-se o campeão do eleitorado jovem, embora este não tenha ido em força às urnas como Sanders tanto pediu. Foi o candidato socialista, apesar de nunca se ter percebido bem de que tipo de socialismo falava. Mas deixou um legado. Nos EUA, a maioria dos jovens preferem o socialismo ao capitalismo, diz uma sondagem da Axios.